Dois dos maiores rivais do futebol paulista se enfrentam pela primeira vez, no próximo sábado (30) na decisão do principal torneio de futebol do continente.
Em qualquer outra circunstância, uma final inédita da Copa Libertadores da América entre Santos e Palmeiras teria ingressos esgotados com antecedência, bandeirões, música e festa nas arquibancadas. A edição de 2020, porém, terminará com o triste retrato do Maracanã, maior palco do futebol brasileiro, praticamente vazio.
Dos 78.838 lugares, apenas 5 mil estarão ocupados. Além dos jogadores, comissão técnica e dirigentes, foram credenciados jornalistas, comissões técnicas, trabalhadores do estádio, patrocinadores, convidados e familiares dos atletas.
A Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) promete respeitar as regras de distanciamento durante o jogo e a comemoração do título, que vale vaga na Copa do Mundo de Clubes da FIFA.
O Brasil de Fato conversou com diretores das duas maiores organizadas de Santos e Palmeiras para entender o sentimento às vésperas de um jogo dessa dimensão em plena pandemia.
A reportagem também ouviu torcedores de coletivos e movimentos antifascistas dos dois clubes, que falaram sobre o significado político desse momento e comentaram polêmicas envolvendo Santos, Palmeiras e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
As campanhas
O Palmeiras não chegava a uma decisão de Libertadores desde 2000, quando perdeu para o Boca Juniors na disputa de penalidades. O último título foi em 1999, sobre o Deportivo Cali, da Colômbia, também nos pênaltis.
O time brasileiro, com nove jogadores com passagem pela Seleção, era comandado por Luiz Felipe Scolari. A última final do Santos foi em 2011, ano do título sobre o Peñarol, com Neymar em campo e Muricy Ramalho na casamata.
Com nove vitórias, dois empates e só uma derrota na atual edição, o Palmeiras chega à decisão com aproveitamento superior ao do rival. A folha salarial também é maior: R$ 14,5 milhões contra R$ 8,5 milhões ao mês. O alvinegro praiano tem oito vitórias, três empates e uma derrota.
Nas semifinais, o Santos do técnico Cuca teve um desempenho superior: empate com o Boca em Buenos Aires, na Argentina, e vitória por 3 a 0 na Vila Belmiro.
O alviverde, treinado pelo português Abel Ferreira, venceu o River Plate por 3 a 0 na capital portenha e perdeu de 2 a 0 com direito a sufoco na partida de volta, no Allianz Parque.
Do lado de fora
Diretor da Torcida Jovem, maior organizada do Santos, Marcelo Caverna afirma que ficar de fora do estádio desperta uma mistura de emoções.
“É um sentimento muito complexo. A ausência, a saudade, a revolta por estar vivendo isso também. Acho que o grande aprendizado vai ser valorizar mais a vida como um todo, valorizar o fato de poder estar no estádio, vibrando, cantando, valorizar nossas amizades”, descreve Caverna, que também é mestre de bateria da torcida e da escola de samba da Torcida Jovem.
Quando o Santos venceu o Boca por 3 a 0, no último dia 13, Marcelo sequer encontrou os amigos: ficou em casa, recluso, recuperando-se da covid-19.
A partida de volta da semifinal foi a primeira vez em toda a Libertadores que a torcida organizada abriu sua quadra para os torcedores.
“Até ali, a Jovem não promoveu nenhum telão, nenhuma aglomeração, por ética e conhecimento do protocolo. Quem se aglomerou fez isso espontaneamente, sem um comando”, ressalta.
O gesto de abrir a quadra, que será repetido no sábado, baseia-se no entendimento de que o Estado falhou ao proteger os cidadãos.
“O pobre está no trem, no ônibus, no metrô, aglomerado, correndo risco 24 horas por dia para trabalhar. Fizemos a nossa parte, tentando evitar aglomeração, mas o Estado não fez a parte dele”, questiona.
“Mesmo com a quadra fechada, víamos que estava todo mundo se aglomerando em outros lugares. Então, a ideia foi trazer o pessoal ‘para a casa’ e, ali, tentar garantir higienização, máscara. Mas torcida é isso: é a realidade da rua.”
Gabrielle Cintra, diretora de comunicação da Torcida Mancha Alvi Verde, maior organizada do Palmeiras, acredita que o calendário do futebol não deveria sequer ter sido retomado.
“Foi cedo a retomada dos jogos. Com certeza, o Brasil pecou – e ainda peca – nas ações de enfrentamento à covid. Acho que a volta aos estádios só deve acontecer quando todos estiverem vacinados, por volta de agosto, ou até mais, que é o mais prudente”, afirma.
História, rivalidade e diferenças
As torcidas de Santos e Palmeiras protagonizaram o duelo com maior público na história dos clássicos paulistas. Foi em 15 de outubro de 1978, no Morumbi: 127.423 torcedores viram o alviverde vencer o rival por 2 a 0 pelo Campeonato Paulista. Aquela edição foi vencida pelo próprio Santos, em junho de 1979.
“Não existe relação nenhuma. Existe rivalidade.” É assim que o santista Marcelo Caverna se refere às torcidas organizadas do adversário.
A Jovem foi fundada em setembro de 1969, no Brás, em São Paulo, quando o camisa 10 do Santos ainda era Pelé e o Brasil vivia sob a repressão do Ato Institucional nº 5 (AI-5).
Caverna fala com orgulho da participação da organizada santista no movimento Diretas Já!, decisivo no processo de redemocratização do Brasil. Ele também ressalta que a Jovem foi a primeira a se manifestar contra a candidatura de Jair Bolsonaro em 2018, devido a seu caráter antidemocrático.
Quando Bolsonaro participou de um jogo festivo na Vila Belmiro, no fim de 2020, a Torcida Jovem e a Sangue Jovem, outra organizada do clube, protestaram.
“As torcidas [de Santos e Palmeiras] têm ideologias e formações diferentes. A Jovem é uma torcida nômade, formada principalmente pelo povo periférico de São Paulo. Tanto é que, quando o Santos pratica valores de ingresso alto, o povão não cola”, observa.
O Palmeiras foi fundado em 1914, com o nome Palestra Itália, por trabalhadores imigrantes italianos. “Perseguido em 1942, o clube teve que combater o fascismo internamente e externamente”, segundo o coletivo Palmeiras Antifascista.
A mudança de nome para Sociedade Esportiva Palmeiras foi uma imposição, em meio à Segunda Guerra Mundial. O Brasil, governado por Getúlio Vargas, havia declarado guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e qualquer menção ao país da bota era entendida como alusão ao fascismo de Mussolini.
A mais antiga organizada do Verdão em atividade é a Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP), fundada em 1970 por trabalhadores do clube, estudantes do colégio privado Dante Alighieri e moradores do bairro Pompeia, em sua maioria italianos ou descendentes.
A Mancha Alvi Verde tem uma história mais recente. Ela nasce em janeiro de 1997, fundada por ex-integrantes da torcida Mancha Verde – judicialmente extinta em 1995, após confronto com a Independente, do São Paulo.
“Não temos relação nenhuma com a Torcida Jovem do Santos”, confirma Gabrielle Cintra, deixando claro que a rivalidade entre os times não é só dentro de campo.
Antifascismo
O Brasil de Fato entrou em contato com torcedores antifascistas dos dois clubes. Um integrante do movimento Santos F.C. Antifascista, que não quis se identificar, diz que o jogo de sábado coloca frente a frente duas propostas opostas de futebol.
“O Santos é um clube que resiste, se reinventa, se supera diante de vários problemas, administrações pífias, como ocorrem em outros clubes também”, afirma.
“Então, além de enfrentar um rival histórico, vamos enfrentar a ideia mercantilização do futebol, para mostrar que esse modelo liberal, com grandes investidores privados, pode ser vencido com uma molecada de talento, que aprende a jogar bola na rua e que a gente acolhe lá na Vila [Belmiro].”
Impedido de contratar jogadores pela Fifa, por não pagamento de dívidas, o Santos tem 20 “meninos da Vila” no elenco profissional. O atacante Kaio Jorge, de 18 anos, já fez cinco gols na Libertadores, e o zagueiro Lucas Veríssimo, 25, é um dos destaques da competição.
Embora tenha um elenco mais caro, o Palmeiras também aposta nas categorias de base para levar a taça. Patrick de Paula, de 21 anos, Gabriel Menino, 20, Danilo, 19, Gabriel Silva, 18, e Gabriel Veron, 18, são alguns dos pilares do time de Abel Ferreira.
O Palmeiras Antifascista respondeu coletivamente às perguntas do Brasil de Fato e relativizou a rivalidade com o Santos.
“Nosso inimigo é o fascismo e outras formas de opressão. Adversários que também batalham contra isso são nossos irmãos de luta. A rivalidade existe apenas em campo. Temos uma boa relação com os coletivos antifascistas do Santos e já nos encontramos na Marcha Antifascista de São Paulo”, lembram os torcedores.
Sobre as preocupações sanitárias, eles acrescentam que a pandemia escancarou a desigualdade no país e que a volta do futebol foi precipitada.
“Agora, exigir que o torcedor não esteja nas ruas em uma decisão após 20 anos, mesmo já se expondo diariamente para trabalhar, com os transportes lotados, é demagogia”, afirma o coletivo, lembrando que o Palmeiras foi um dos clubes com mais atletas infectados pelo coronavírus. “Acreditamos que os torcedores devem voltar apenas quando houver vacina e após os cientistas orientarem que é seguro voltar", completa.
Política, vacina e final única
Marcelo Caverna, da Torcida Jovem, reforça que o Estado é responsável pela crise sanitária que o país enfrenta: “Tivemos negacionismo por parte do governo federal, sobre a covid-19, e uma tentativa de fazer marketing com a vacina, da parte do governador [João Doria, do PSDB]", aponta.
"Não tem como pedir ao torcedor pra ver o jogo sozinho, e também não tem como liberar a entrada no estádio agora. Então, não somos nós que temos que decidir. É o Ministério da Saúde, são os técnicos que precisam nos dar respostas”, acrescenta.
Quando o assunto é ideologia e política, o coletivo Palmeiras Antifascista insiste que Bolsonaro não representa o conjunto da torcida alviverde. Em 2018, antes mesmo de tomar posse, o capitão reformado entrou no campo do Allianz Parque para levantar a taça de campeão brasileiro com os jogadores.
“O atual presidente do Brasil e sua família não são palmeirenses. Eles utilizam o clube como palanque político”, afirmam os torcedores, mandando um recado a quem vai torcer contra o Palmeiras porque rejeita o presidente.
“Bolsonaro já utilizou camisetas de todos os clubes do Brasil, inclusive do nosso maior rival. Então, acreditamos que, em 2018, ele entraria em campo e levantaria a taça independente do clube que fosse campeão”, acrescentam. “Nesta final [da Libertadores], quem irá torcer contra o Palmeiras serão nossos adversários. Com o fascismo de Bolsonaro há apenas um lugar para se combater: a rua”.
Torcedores antifascistas dos dois lados concordam que o modelo de final única adotado pela Conmebol afasta ainda mais o torcedor do estádio. Até 2018, a Libertadores era decidida em dois jogos, na casa dos finalistas. A mudança para a decisão em “campo neutro” é inspirada na Liga dos Campeões da Europa.
“A final única impossibilita que o torcedor esteja presente no momento mais aguardado do futebol latino-americano. As despesas de viagem e acomodação são impraticáveis para a maioria da torcida”, diz o coletivo Palmeiras Antifascista.
Em 2019, por exemplo, a final entre Flamengo e River Plate foi disputada no Peru. "A Libertadores da América tem esse nome para nos lembrar dos heróis que fizeram frente contra o colonialismo europeu. Não devemos ter complexo vira-lata e importar esse projeto de futebol moderno nocivo ao nosso povo", ressaltam.
Gabrielle Cintra, da Mancha Alviverde, reforça: “É péssimo, e o fato de ser no meio de uma pandemia piora a situação. Não podemos ir, não estaremos perto do estádio, não podemos fazer festa lá dentro. É tudo estranho."
"Não vejo ponto positivo – só se for para o campeão, que não tem a chance de tomar a virada no que seria o jogo da volta”, brinca a torcedora.
Os elencos de Santos e Palmeiras já estão no Rio de Janeiro (RJ) para a disputa da final, que começa às 17 horas deste sábado (30). Se houver empate nos 90 minutos, a taça será decidida nos pênaltis.
Edição: Leandro Melito