ECONOMIA

Dolarização da economia impulsiona surgimento de aplicativos de entrega na Venezuela

Desde 2019, o país vive um processo de dolarização que reativou a economia ao custo de mais precarização do trabalho

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

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Os primerios aplicativos de entrega à domicílio foram criados em 2020 na Venezuela e agora são a principal opção de trabalho para jovens de 20 a 30 anos. - Michele de Mello / Brasil de Fato

Na Venezuela, o dólar se tornou a alternativa à moeda nacional, o bolívar soberano, que desvalorizou 866 mil por cento nos últimos cinco anos. Em 2020, 61% das transações comerciais foram realizadas em moeda estrangeira, segundo a empresa privada Datanálisis.

Já o governo afirma que a cifra real é de 77% de transações em bolívares soberanos e apenas 20% com dólares em espécie. 

Para o presidente Nicolás Maduro, a dolarização parcial foi positiva para reativar a economia, que retraiu 20% no ano passado. No entanto, o processo desordenado provoca uma série de mudanças na sociedade venezuelana. 

Um dos reflexos da dolarização e da pandemia foi o surgimento de aplicativos de entrega a domicílio. Por conta do bloqueio econômico, imposto pelos Estados Unidos desde 2015, várias empresas internacionais não operam no país, tais como Uber, Rappi ou iFood.

Aplicativos como Yummy, Pedidos Ya, Ubii Go, Liveri e Traetelo surgiram em 2020, criados por venezuelanos ou como franquias de empresas de outros países da América Latina.

“Não entendíamos como no resto do mundo havia várias marcas de delivery efetivas e na Venezuela não. Então em 2019 começamos a trabalhar nesse assunto. No nosso caso não foi um resultado da pandemia, mas um produto que estava sendo desenvolvido desde 2019, e para ver se estávamos prontos para competir, lançamos o aplicativo em plena pandemia”, comenta Lígia Velásquez, vice-presidenta de comunicação e mercado do grupo Ubii.

O grupo Ubii foi criado em 2016, com a marca Ubii Pagos, vendendo máquinas de pagamento com cartão de débito e crédito, e desenvolvendo aplicativos de venda. Em 2020, foi lançado o app Ubii Go com serviço de delivery em 14 cidades do país. Possuem um quadro com 60 funcionários administrativos e no último mês realizaram 5,5 mil vendas pelo app. A empresa fica com 16% do valor de cada pedido. 


O grupo Ubii lançou a marca Ubii Go em 2020, que já opera em 14 cidades do país e tem uma média de 5,5 mil vendas por mês. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Para incentivar investimento estrangeiro e novos negócios na Venezuela, a partir de 2021, será permitida a abertura de contas em dólares, com cartões de débito que farão a conversão direta a bolívares. Dessa forma, o Executivo busca diminuir a fuga de capitais e aumentar a arrecadação fiscal.

“Eu digo que a Venezuela é o país onde tudo é possível, para bem e para mal, e as realidades são muito distintas. Sim, obviamente é necessário uma conta bancária nacional para receber o pagamento em bolívares, porque ainda que não pareça, muita gente paga em bolívares e precisa desse espaço. Sim, você também necessita de uma conta no exterior, porque muita gente paga em dólares, essa é outra realidade”, afirma Lígia Velásquez.

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Lígia faz parte de uma geração de jovens venezuelanos que, apesar das divergências com a orientação política da Revolução Bolivariana, preferem apostar no país, revivendo um nacionalismo que foi silenciado nos últimos anos, com a ascensão de Juan Guaió como líder da oposição. 

O cenário de crise econômica poderia espantar qualquer empresário, no entanto, a situação de hiperinflação e de desemprego (que em 2020 atingiu 8,8% dos venezuelanos) tornou o país um ambiente favorável aos negócios. Com 43,9% da população economicamente ativa no trabalho informal, a abertura de empresas que oferecem serviço de delivery se tornou uma válvula de escape para quem precisa do emprego e uma oportunidade para quem pode investir.


O grupo Ubii, que desenvolveu o app Ubii Go, oferece um espaço de lazer, com refeitório e sala de jogos para os 60 trabalhadores da área administrativa, mas não inclui os entregadores. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Uberização: duas faces da mesma moeda

A inovação ajudou a democratizar a circulação do dólar dentro do país, mas também abriu caminho para uma nova modalidade de precarização do trabalho.

A uberização e outras formas de terceirização são realidade para cerca de 158 milhões de latino-americanos. O trabalho informal foi a principal fuga do desemprego, que em 2020, afetou 30 milhões de pessoas em todo o continente  – a maior cifra da última década, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

“Eu trabalhava num escritório, com a pandemia, a empresa quebrou e então comecei a trabalhar para os aplicativos. É melhor que trabalhar em um escritório. O que faço em uma semana aqui na Pedidos Ya, num escritório demoraria dois ou três meses. Em uma semana boa posso fazer US$180 - US$150”, conta César Contreras Cisneros, que viaja cerca de 20km todos os dias de Mameira, no extremo oeste da capital, até o bairro Altamira, no leste da Grande Caracas, onde recebe os pedidos.

Essas novas modalidades têm como características a falta de garantias laborais, o aumento da carga de trabalho e as relações mediadas pela tecnologia. 


Apesar de distribuir alimentos frescos por toda a cidade, os entregadores devem comer suas marmitas frias na beira da estrada. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Para Ludmila Costhek Abilio, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho de Campinas, a uberização é um estágio de um processo de reorganização do trabalho, que utiliza a tecnologia como um vetor para as mudanças de um modelo, que já estavam sendo gestadas anos antes de surgirem os aplicativos, como é o exemplo das terceirizações e quarteirizações.

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Esse processo tomou força a partir de 2008, com a crise econômica mundial. Nessa época, o jornalista Jeff Howe foi o primeiro a utilizar o termo crowsdsourcing para expressar que as subcontratações (outsourcing) haviam chegado a um novo momento: o da transferência de trabalho, de custos e de responsabilidades das empresas para multidões de usuários-trabalhadores.

"O elemento central catalisado pelas plataformas são as novas formas de dispersar o trabalho sem perder o controle sobre ele", aponta Abilio em um trabalho de campo com trabalhadores por aplicativo no Brasil.


Os entregadores devem ter um smartphone com acesso à internet constante para poder aceitar os pedidos que aparecem no aplicativo. / Michele de Mello / Brasil de Fato


Nessa nova lógica, a pessoa adere ao trabalho, ao invés de ser contratado pela empresa. "O trabalhador encontra-se à disposição da empresa, sem ter qualquer clareza ou controle sobre a forma como seu trabalho é disponibilizado e remunerado”, analisa a pesquisadora em seu estudo.

Na Venezuela, o negócio do delivery mostra as duas caras da desigualdade. Por um lado, o perfil do consumidor, que deve ter algum tipo de ingresso em moeda estrangeira para poder adquirir um produto. Do outro, o entregador, que trabalha para mais de um aplicativo ou por mais de oito horas diárias para aumentar a renda.

Como é o caso de Jesús Francisco Ruiz, que trabalha há três meses para a Ubii Go e sustenta quatro pessoas. Quando era mototáxi, ganhava cerca de US$40 semanais, na Ubii Go ganha US$50 em uma semana fraca, mas pode faturar até US$150 quando o movimento é bom.

"Desde que estou aqui, estou melhor, ganho um pouco mais e trabalho um pouco menos. Eu trabalho todo o dia, umas 15 horas diárias mais ou menos", relata.

As ruas da zona leste da capital, região que concentra a maior renda per capita de Caracas, são o ponto de encontro dos entregadores, que não têm onde descansar. Em alguns lugares, os trabalhadores são expulsos por comerciantes locais ou pela polícia.


Sem ter um espaço de descanso ou um ponto com conexão de internet, a maioria se aglomera em praças e viadutos da zona leste da capital, que concentra maior renda per capita de Caracas / Michele de Mello / Brasil de Fato

O sistema dos apps

A maioria das empresas que oferecem o serviço de delivery pagam uma taxa fixa por quilometragem ao motoboy. Os pedidos são anunciados no aplicativo, o entregador deve estar atento para aceitar a corrida. Quanto mais rápido, pontual e disponível para atender às entregas, maior é a avaliação dentro da plataforma e maior a oferta de pedidos.

Em todos os casos, o trabalhador decide quantas horas e dias da semana pretende trabalhar, partindo de um turno mínimo de oito horas diárias.  

“Trabalho todos os dias, a maioria de nós trabalha de segunda a segunda. E aqueles que só trabalham aqui pegam mais turnos, de manhã, de tarde e à noite. Trabalham todo o dia, das 8h às 23h”, relata Jason Zambrano, entregador da empresa uruguaia Pedidos Ya. Ele também vende tapetes para complementar a renda.

Não há hora extra, só um adicional noturno, nos fins de semana ou para entregas de longa distância. O pagamento é semanal, em dólares em espécie ou transferidos de contas no exterior e convertidos em bolívares.

Na Venezuela, nenhuma empresa de delivery oferece um espaço de descanso, almoço ou acesso a banheiros aos entregadores. Assim como não há qualquer seguro de vida ou para a motocicleta.

Muitos desistem de trabalhar à noite por conta da insegurança. Se o entregador é roubado, tem que arcar com os custos do pedido e dos possíveis danos ao seu veículo.

O desabastecimento de gasolina na Venezuela é outro revés para a conta dos trabalhadores, que se organizam em grupos para passar as madrugadas nas filas dos postos de gasolina subsidiada.


Com a escassez de gasolina, os entregadores criam grupos para se revezar na fila dos postos de gasolina, que começa a se formar ainda de madrugada. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Migração reversa

O fenômenos dos apps se tornou um atrativo para os venezuelanos que emigraram do país atrás de emprego e de outras fontes de renda. Segundo o Alto Comissionado Para Refugiados das Nações Unidas (Acnur), cerca de 4 milhões de venezuelanos deixaram o país nos últimos quatro anos. O governo assegura que a cifra é exagerada, mas não oferece outros dados como contraposição.

“50% do meus contatos no WhatsApp estão fora do país, dispersos em vários lados, mas todos já pensando em regressar e querendo trabalhar com delivery. Vários me perguntam quanto cobro, como funciona, sabe? O delivery está revolucionando o país outra vez, porque todo mundo quer trabalhar com delivery e funciona, porque eu ganho o mesmo ou mais do que alguém que está no Peru ou na Colômbia”, afirma César Contreras, entregador da empresa Pedidos Ya desde novembro do ano passado.

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No entanto, para quem permaneceu na Venezuela, voltar ao trabalho habitual ainda seria a melhor opção. Jesús Batista era policial e há uma semana começou a trabalhar como entregador na empresa Dingo. Antes recebia um salário mínimo de 400 mil BsS, o que equivale a menos de um dólar. Agora, em uma semana com poucas entregas pode ganhar US$20 e nas semanas com mais pedidos pode chegar a fazer US$60.

“Gostaria de voltar ao meu trabalho anterior, mas tem que melhorar o salário, porque você não pode trabalhar por vocação ou por gosto, você precisa trabalhar pelo dinheiro”, conclui o ex-policial.

Edição: Raquel Setz