Se formos comparar nossas desgraças com as bíblicas, não faremos feio no departamento de misérias
O que aconteceu com o Brasil? Esta é uma pergunta recorrente entre nós. No exterior, ainda mais. Tudo aconteceu de forma tão vertiginosa nos cinco últimos anos que até leva a suspeitar de uma espécie de maldição de fundo bíblico lançada sobre aquilo que já foi "O País do Futuro".
Chegou-se a um ponto que tem gente à procura de uma explicação sobrenatural. Estarrecidos, lembram as Dez Pragas do Egito citadas pela Bíblia e atiçadas por aquele Deus do Velho Testamento para quem praga pouca é bobagem.
Faz até sentido, já que, se formos comparar nossas desgraças com as bíblicas, não faremos feio no departamento de misérias.
:: Com vitória de Lira na Câmara,"toma lá dá cá" deve imperar sob comando do centrão ::
Egito antigo, Brasil atual
Comecemos pela contaminação das águas. Tirando o sangue que manchou o Nilo, a poluição hídrica vai de vento em popa por aqui, já que o ministério que passa a boiada até hoje não sabe quem tingiu de óleo as praias do Nordeste. No Egito, deu-se um ataque maciço de mosquitos. Aqui, os mosquitos nos fornecem uma sólida endemia de dengue com um milhão de casos/ano para contrapor.
Para os egípcios, Deus mandou uma chuva de granizo que devastou seus campos. Para o Brasil, alguém — espero que o Senhor não tido nada com isso — assoprou um fogo enorme no Pantanal, queimando 4 milhões de hectares.
Leia também: Direitos dos trabalhadores também estão em jogo na eleição da Câmara
225 mil mortes
Naqueles tempos antigos, a cólera divina fez morrer todos os primogênitos dos homens e dos animais. Por aqui, o Ministério da Doença empregou sua logística para produzir e entregar 225 mil cadáveres. Por enquanto.
Uma tremenda escuridão encobriu o Sol por três dias naquele reino infeliz. Em Pindorama, ingressamos no terceiro ano de escuridão. Lá e aqui tivemos ataques de gafanhotos. A história prossegue com mais semelhanças.
Tudo isso leva a uma desconfiança de herege. Como o Onisciente gastou tanto tempo, energia e efeitos especiais para gerar e gerir dez pragas quando poderia obter o mesmo resultado com uma só chamada Jair Bolsonaro?
:: 2020: o ano em que Bolsonaro escancarou seu projeto de governo ::
Centrão
Seria um investimento muito menor para obter uma resposta muito maior no segmento da fabricação de catástrofes. Nem precisaria abrir o mar Vermelho. Bastaria enviar junto o Centrão – aliás, o que é uma praga de gafanhotos perto do Centrão? Ao qual, a bem da verdade, melhor caberia a graça de “Direitão”, não fosse a corrupção que, além dos homens, também apodrece a alma das palavras.
Agora sob nova direção, o Centrão daria um jeito naquilo que Bolsonaro não pudesse exterminar. A vitória de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara dos Deputados, nesta segunda-feira (1º), demonstrou a capacidade operatória do bloco de destruir antes mesmo de empalmar o poder. A prova está nos R$ 3 bilhões em emendas que recebeu do Palácio do Planalto.
Leia também: "Primeira medida de Lira como presidente é um golpe", afirma líder do PSOL
Sob investigação
O novo presidente da Câmara assumiu a bordo de dois processos nos quais figura como réu por peculato e lavagem de dinheiro, além de uma investigação por sonegação fiscal, sem incluir uma denúncia de violência doméstica.
Lira recebeu exatos 302 votos. Um número emblemático, altamente evocativo, que conduz a uma canção perseguida do século passado. Nos seus primeiros versos, ela diz assim: “Luiz Inácio falou/ Luiz Inácio avisou/ São 300 picaretas com anel de doutor...”
* Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Camila Maciel