Darcy Ribeiro já havia nos alertado anos atrás que “a crise na educação não é uma crise, é um projeto”. A educação brasileira, com a entrada de Jair Bolsonaro no comando do executivo nacional, passou a sofrer fortes ataques ideológicos e estruturais, a partir da construção de um projeto de educação que visa ao desmonte de todas as unidades educacionais com corte de recursos públicos, desde a educação básica à superior, e o avanço da ideologia obscurantista baseada em um pensamento autoritário que não permite a voz da ciência na sociedade (inclusive em tempos de pandemia, em que a contribuição científica é essencial) e muito menos a reflexão sobre nossa realidade em sala de aula.
Leia o Boletim Ponto: Não é crise, é projeto
É certo que esse projeto educacional não começou no governo Bolsonaro, por mais que muitos retrocessos em nossa educação tenham sido efetivados no último período. Darcy Ribeiro, Paulo Freire e muitos outros educadores, comprometidos com a defesa da educação e críticos à nossa realidade, já alertavam sobre o papel da educação na estrutura social brasileira e como escolas e universidades se constituem como espaços de construção da “educação tradicional”, como definida por Freire, como uma educação em que não existe a possibilidade da reflexão crítica e da humanização.
Cursinhos populares
O povo brasileiro enfrenta a batalha do acesso ao ensino superior há muitos anos. Os primeiros cursinhos populares surgem a partir da demanda da classe trabalhadora em acessar a Universidade, sempre muito elitista, desde seu surgimento. Foram importantes polos de luta pela formulação e aplicação da política de cotas, a ampliação das vagas nas universidades públicas e assistência estudantil para estudantes pobres. E, mesmo com esses pequenos avanços, ainda temos uma educação voltada às demandas tecnicistas do mercado de trabalho e da iniciativa privada e como uma importante ferramenta das elites para o controle social e do pensamento ideológico da sociedade.
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi instituído no ano de 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, ainda como uma prova avaliativa sobre os conhecimentos abordados durante o ensino médio. Em 2009, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, tendo Fernando Haddad à frente do Ministério da Educação, o Enem torna-se uma prova que possibilita o acesso a uma série de instituições privadas e públicas de ensino superior (em especial universidades e institutos federais), por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Hoje é o maior exame brasileiro (e o segundo maior exame vestibular do mundo, ficando atrás somente do Gaokao, na China), permitindo que milhões de jovens e adultos concorram às vagas oferecidas nas instituições de ensino.
Democratização da educação
Mesmo estando muito distante da universalização do ensino superior brasileiro, o Enem configurou-se como uma importante ferramenta na democratização do ensino superior. Sem sombra de dúvidas a consolidação do Enem e de outras políticas públicas de ampliação do acesso e permanência estudantil foram fundamentais para que os estudantes pobres tivessem melhores condições de garantir a continuidade dos estudos e o diploma universitário. Defender o Enem é defender o povo brasileiro dentro das universidades.
Em meio à pandemia
Acabamos de acompanhar mais uma edição do Enem em meio a uma grave crise de saúde pública mundial. Afinal, estamos em meio a uma pandemia e com mais de 225 mil mortos pelo coronavírus no Brasil. Além disso, as escolas estão fechadas desde março de 2020, passando a atuar de forma virtual na condução dos conteúdos curriculares. Sabemos que as aulas nunca chegaram às periferias brasileiras.
Estudantes de escolas públicas e educandos de nossos cursinhos populares não tiveram condições de acompanhar a dinâmica e não puderam se preparar para o Enem. Isso ocorreu mesmo com todo o esforço de professores e professoras da rede pública e educadores e educadoras populares frente a um cenário de dificuldades no acesso à internet e aos conteúdos curriculares e a falta de condições para o estudo.
A realidade da educação, agravada pela atual gestão do Ministério da Educação (MEC), infelizmente, mostrou-se dura com os jovens brasileiros. Tiveram que enfrentar o pior Enem da história sem preparo e sujeitos à contaminação de um vírus mortal.
:: Estudantes da rede pública contam por que faltaram ao Enem; abstenção foi de 51,5% ::
Luta pelo adiamento do Enem
A Rede de Cursinhos Podemos+ e uma série de entidades estudantis e sindicais ligadas aos trabalhadores da educação defenderam desde o início o adiamento do Enem. Não estávamos em condições de realizar uma prova neste momento. As consequências dessa intransigência reforçam o projeto sobre o qual tratávamos no começo do texto. O MEC, sob comando de Milton Ribeiro, sabia de todas essas condições. Manter a prova em meio a esta crise foi mais um passo no desmonte das instituições públicas e da democratização do ensino superior.
Esta edição do Enem teve recorde de abstenção, com mais de 50% de um total de 5,7 milhões de inscritos (2,8 milhões de pessoas não foram fazer a prova) e uma série de problemas logísticos com salas lotadas (realidade muito diferente da propaganda que dizia que seguiriam todos os protocolos de saúde) e casos em que os inscritos foram impedidos de realizarem as provas. Entre os principais motivos da abstenção estão o medo da contaminação e a falta de preparação prévia para a prova, principalmente para estudantes de escolas públicas.
:: Ao manter Enem, governo não considera estudantes pobres, diz vice-presidenta da UNE ::
Enem digital e reaplicação de provas
Os dados do Enem digital foram ainda piores. Dos mais de 93 mil inscritos, somente 28,7% realizaram a prova, com uma abstenção de mais de 66 mil inscritos. Mesmo com essa péssima organização para a aplicação da prova, o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), Alexandre Lopes, disse ter sido uma prova dentro do planejado. Estava planejado retirar a possibilidade de acesso à universidade para 71% dos inscritos?
O calendário de reaplicações do Enem ainda segue no mês de fevereiro para pessoas que estavam com covid-19 ou que enfrentaram problemas técnicos durante a realização da prova. É lastimável o projeto que visa transformar o Enem em uma prova digital frente à realidade de nossos estudantes de escolas públicas. Não há internet e muito menos computador para todos.
Essa lastimável situação em que o povo brasileiro se encontra exige que continuemos a construção do nosso projeto de educação para o Brasil. Um projeto popular para a educação. Tarefa difícil em um momento de ofensiva conservadora, mas muito necessária para que possamos construir outra realidade.
Em defesa do Enem
Continuaremos lutando em defesa do Enem, mantendo viva a esperança do ensino superior para a juventude brasileira e trabalhando para a construção de espaços educativos que tragam a reflexão sobre nossos problemas e como devemos enfrentá-los de forma coletiva, organizada. No ano do centenário de Paulo Freire, a força de suas ideias ainda se mantém viva e nos dá melhores condições para que sigamos na construção de outro projeto para a educação.
Aos 2,8 milhões de jovens que ficaram de fora desse Enem e aos outros tantos milhões que ficaram de fora da Universidade, continuaremos nossa luta em busca da reparação dessa tamanha injustiça. Aqui, encontrarão muita resistência.
*Leonardo Paes Niero é biólogo; coordenador do Cursinho Popular Carolina Maria de Jesus, da UFSCar; e professor da Rede de Cursinhos Populares Podemos+, do Levante Popular da Juventude.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Camila Maciel