Mais de 90 entidades científicas, acadêmicas e tecnológicas estão mobilizadas para tentar reverter dois vetos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que tiraram até R$ 9 bilhões do fomento à ciência e à tecnologia em 12 de janeiro.
O canetaço ocorreu durante a sanção da Lei Complementar 177, que regulamenta o uso de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
Bolsonaro retirou do texto a proibição de que recursos do fundo fossem alocados em reservas de contingência. Com isso, cerca de R$ 4,8 bilhões poderão ser desviados para outra finalidade em 2021.
O segundo veto “riscou” o artigo que pretendia liberar outros R$ 4,2 bilhões do FNDCT, colocados em reserva de contingência em 2020.
O orçamento de fomento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) previsto para este ano é de R$ 2,8 bilhões.
O que está em jogo
Criado em julho de 1969 e formado a partir da arrecadação de impostos de empresas, o FNDCT é uma das principais fontes de recursos orçamentários e financeiros para o apoio à infraestrutura científica e tecnológica das instituições públicas do país.
Na reserva de contingência, os recursos podem ser usados para custear operações financeiras do Tesouro Nacional ou servirão como “amortecedor fiscal”, em caso de imprevistos ao longo do ano.
As entidades científicas, acadêmicas e tecnológicas lançaram uma petição contra os vetos, que já reuniu mais de 70 mil assinaturas.
“Até 2016, se colocava na reserva de contingência até 30% dos recursos do fundo. Agora, está em 90%”, ressalta Ildeu de Castro Moreira, doutor em física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
“O presidente da República, apesar de prometer que iria liberar esse recurso, vetou por influência clara do setor econômico. Para nós, é um desvio de finalidade. É um recurso que, por lei, deveria vir de setores econômicos privados para pesquisa e desenvolvimento, mas é usado para outras finalidades pelo Ministério da Economia”, acrescenta.
O apoio maciço dos parlamentares ao texto original faz com que a comunidade científica se mantenha otimista pelos vetos. No Senado, foram 71 votos favoráveis e, na Câmara, 385. Para rejeitar um veto são necessários 41 votos de senadores e 257 de deputados.
O argumento do Planalto é que a liberação do recurso para investimento em ciência poderia implicar em “aumento não previsto” de despesas e teria impacto em todo o orçamento público, pois “exigiria o cancelamento de dotações em outras áreas” para respeitar o teto de gastos.
Moreira enfatiza que, se não for derrubada, a Emenda Constitucional 95 – que instituiu o teto – estrangulará o orçamento e as políticas públicas até 2036, com consequências graves em todas as áreas.
Abandono às agências de fomento
Presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé teme que o consenso criado no Congresso em torno da importância do FNDCT possa ser modificado após a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara dos Deputados com apoio de Bolsonaro.
“A gente tinha muita expectativa de que os recursos do FNDCT revertessem um cenário, que vem em consolidação, de desmonte progressivo da ciência”, ressalta.
“Segundo a proposta de lei orçamentária para 2021, o que a gente tem é um cenário de apagão da ciência.”
A situação de duas das principais agências de fomento deixa claro esse risco. Se o orçamento proposto pelo governo for aprovado, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) só teria condições de pagar bolsistas por quatro meses; a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por oito meses.
“E não adianta só bolsa se o pesquisador não tem insumos, se o laboratório não está funcionando, se não consegue fazer cooperação internacional ou atualizar seu material de trabalho”, enfatiza Moreira.
“O orçamento das universidades federais caiu 17% nas despesas cotidianas. Muitas vão parar no meio do ano por falta de recurso”, prevê o presidente da SBPC.
A empresa pública Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), fundada em 1967, terá R$ 500 milhões para investimento no ano, o que Moreira considera “absolutamente insuficiente”.
“Uma parte já está comprometida para outras atividades, então, na realidade, é quase nada”, completa.
A presidenta da ANPG lembra que a pandemia de covid-19 escancarou a importância do investimento em ciência, tecnologia e inovação, mas essa lição não foi aprendida pelo governo.
“A vacina é a grande chave para sair desse processo, e a pandemia também escancarou a dependência tecnológica do Brasil”, analisa.
“O Brasil teria condições de produzir os insumos aqui, mas o projeto em voga hoje nos coloca como consumidores de tecnologia do mundo.”
“Terraplanismo econômico”
Dez anos atrás, o orçamento de fomento para ciência, tecnologia e inovação era o triplo do que Bolsonaro propõe para 2021.
“Em 2015, começou um decréscimo significativo de recursos. Isso se acentuou muito a partir de 2017, e para 2021 se desenha um quadro muito dramático”, prevê Moreira.
“É uma visão econômica de terraplanismo, que não vê a ciência e tecnologia como importantes. (...) Uma visão extremamente redutora, estreita, que ameaça a própria soberania nacional a longo prazo”, lamenta.
O encolhimento da indústria brasileira e da capacidade inovadora do país contrastam com o desenvolvimento acelerado de países que optaram pelo investimento em ciência.
“A China, em 1995, tinha o mesmo PIB [Produto Interno Bruto] que o Brasil e investia o mesmo em ciência e tecnologia, aproximadamente. A Coreia do Sul também. E, de lá para cá, esses dois países dispararam. O que a China fez? Investiu nessas décadas em ciência, tecnologia, inovação”, explica Moreira.
Para Flávia Calé, o discurso anticiência se reflete no desinvestimento em políticas públicas de forma geral, impedindo a realização de um projeto nacional e estimulando a fuga de cérebros.
“O negacionismo tem servido como pano de fundo ideológico para o desmonte do Estado nacional. O problema é de soberania: um governo claramente entreguista, que está desmontado toda possibilidade de o país ter autonomia sobre sua política econômica e sobre seu desenvolvimento”, finaliza.
Lira e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, anunciaram que planejam instalar a Comissão Mista de Orçamento (CMO) nesta terça-feira (9).
Pela Constituição, o Orçamento Geral da União de 2021 deveria ter sido aprovado em dezembro de 2020, mas a comissão não foi instalada por falta de acordo entre os partidos sobre quem seria o presidente.
Edição: Leandro Melito