Denúncia

Funcionários da EBC acusam governo de censurar jornalistas da estatal

Em "carta aberta" comissão de trabalhadores afirma que os profissionais chegam a ser constrangidos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
De acordo com a comissão de funcionários, a EBC não pode acompanhar a evolução da pandemia de covid-19, entre outros atos de censura - EBC/Agência Brasil

Funcionários da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) lançaram uma 'carta aberta' no qual acusam e repudiam as ações do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) de censura nas redações da empresa. A carta foi apresentada na quinta-feira (11), durante uma assembleia virtual com os sindicatos dos jornalistas de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal (veja a íntegra do documento abaixo). 

Nele, os trabalhadores listam alguns casos que corroboram a tese de censura. De acordo com a comissão de funcionários, a EBC não pôde acompanhar a evolução da pandemia de covid-19, no Brasil, por exemplo. 

“A TV Brasil ignorou a falta de oxigênio em Manaus e as Redes Sociais não puderam noticiar a primeira pessoa vacinada contra a covid”, afirmam no documento. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), inimigo declarado de Jair Bolsonaro, foi o primeiro a aplicar o imunizante, antes mesmo do presidente.

Ainda afirmam que outros assuntos, como o desmatamento da Amazônia; o negacionismo científico sobre a pandemia; e a ausência de cobertura humanizada acerca da crise sanitária, com histórias de perdas familiares relacionadas à pandemia e demandas de movimentos sociais, sequer puderam ser pautados. Apenas as reportagens sem críticas ao governo federal conseguem um encaminhamento nas redações.

“O jornalismo é o alvo central de decisões autoritárias e colegas têm sofrido perseguição até com mudança compulsória de setor. Repórteres recebem pautas vexatórias ou absurdas, com destaques, enfoques e temas favoráveis ao governo ou que apenas promovem a imagem do presidente e de ministros de Estado”, afirmam no documento. 

Na mesma linha, também relatam que “vozes dissonantes – incluindo presidentes e autoridades dos Poderes Judiciário e Legislativo – são silenciadas. Jornalistas são constrangidos diariamente a ignorar assuntos relevantes do dia ou fazer uma abordagem superficial que não desagrade”, afirmam. 

138 interferências em um ano e meio

Desde que iniciou o mandato até julho de 2020, o governo de Jair Bolsonaro interferiu 138 vezes no trabalho da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). É o que indica um dossiê realizado pela Comissão de Empregados da EBC, em parceria com sindicatos e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com denúncias de “censura ou governismo” em pautas e matérias da empresa realizadas de janeiro de 2019 a julho de 2020.

Segundo Márcio Garoni, diretor da Fenaj e jornalista da EBC, quando políticas públicas do governo são abordadas, não existe, por exemplo, a visão do contraditório, “que é essencial ao jornalismo em qualquer lugar”. Ao contrário, “ganhou muita relevância o papel de exibir as políticas do governo, mas perdeu relevância nos veículos da EBC o papel mais crítico, que também é dever nosso”.

Militares no comando

Sete militares da reserva ocupam postos de comando na Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), recebendo, somados, R$ 146 mil por mês, R$ 20 mil de média. Seis deles, foram admitidos em 2019, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Apenas um foi contratado em 2018, quando Michel Temer (MDB) presidia o país.

As informações foram adquiridas via Lei de Acesso à Informação (LAI), através do coletivo Fiquem Sabendo. De acordo com o levantamento, os militares Cássio Murilo Garcia Coutinho (R$ 21 mil), Cristiano Mendonça Filho (R$ 17 mil), Hidenobu Yatabe (R$ 26 mil), Luiz Gustavo Franco da Rocha (R$ 14 mil), Marcio Kasuaki Fusissava (R$ 25 mil), Pedro Felix de Goes Junior (R$ 14 mil) e Roni Baksys Pinto (R$ 26 mil) ocupam cargos de direção, chefia e assessoramento.

Leia abaixo a 'carta aberta' na íntegra:

"Nós, trabalhadores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), vimos por meio desta carta aberta reafirmar o caráter público da empresa e exigir que os atuais gestores RESPEITEM os objetivos e os princípios constitucionais da lei que criou a Empresa.

Em seu artigo 2º, parágrafo 8º, a Lei nº 11.652/2008, afirma que a empresa deve ter “autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”, a base da comunicação pública.

A Lei da EBC foi aprovada para aplicar o artigo 223 da Constituição, que estabeleceu “o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”.

Por lei, os veículos da EBC devem difundir e promover a cidadania, a diversidade e a pluralidade.

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Não podemos servir de instrumento para propaganda e promoção pessoal de presidentes ou de governos, como tem sido atestado em inúmeros relatórios produzidos por seus empregados.

Ao longo de 2020, listamos grande volume de episódios de censura no 2º Dossiê de Censura e o relatório da Ouvidoria Cidadã da EBC, lançada em dezembro pela Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, detalhou casos de governismo e desrespeito à lei em conteúdos veiculados.

A nova gestão altera o organograma e cria novos cargos para abrigar apaniguados.

Enquanto isso, a programação própria dos veículos da EBC é reduzida a quase nada e feita sem nenhum investimento. Não há mais incentivo para a produção independente. A empresa produz programas encomendados pela Esplanada e pelas Forças Armadas – que, inclusive, se regozijou premiando um deles, o Faróis do Brasil. Outra imoralidade é a injeção de dinheiro público em emissoras privadas. Saiu no jornal que a EBC negocia a compra de "Os dez mandamentos", a novela bíblica da Record, para ser exibida na TV Brasil.

O próprio diretor-presidente da EBC, Glen Lopes Valente, deu declarações que contrariam os princípios de comunicação pública previstos na lei. Em tom de comunicação institucional, sua fala foi publicada na Agência Brasil no dia 19 de novembro, na matéria “EBC participa do 10º Encontro de Gestão de Custos do Setor Público”: “Brinco que a gente tem um conglomerado de comunicação. A gente tem plataforma de rádio, televisão, internet e a gente está maximizando todas essas plataformas para fazer a comunicação de tudo que acontece no governo”.

São inúmeros os casos de interferência na pauta jornalística e na grade das emissoras de rádio ou da TV Brasil. Tivemos alterações profundas em programas que são patrimônio da TV pública, como o Sem Censura, há 35 anos no ar. Um marco por ampliar o debate na sociedade no pós-ditadura, o Sem Censura foi totalmente reformulado em 2020 e saiu da grade no fim do ano passado.

Registramos também a edição do programa Antenize para retirada de uma imagem de Marielle Franco; a censura ao Alto-Falante, da Rede Minas, que não foi ao ar por conter clipe de Arnaldo Antunes falando sobre milícia, autoritarismo, tortura e terraplanistas.

A diversidade, uma marca da TV Brasil, que já teve uma jornalista negra, Luciana Barreto, entre os seus âncoras, também sofre. Não se pode fazer qualquer menção ao público LGBTI.

Todos os esforços dessa gestão são contrários e desencorajadores da comunicação pública, assim como em igual medida buscam camuflar e blindar o atual governo de quaisquer polêmicas.

A empresa negligencia, ainda, a cobertura da pandemia de Covid-19, dando dados descontextualizados e não acompanhando a evolução da doença no Brasil. A TV Brasil ignorou a falta de oxigênio em Manaus e as Redes Sociais não puderam noticiar a primeira pessoa vacinada contra à Covid.

Outros assuntos sequer foram pautados, como as incompetências administrativas de ministérios chefiados por militares; o desmatamento da Amazônia; o negacionismo científico sobre a Covid-19; além de ausência de cobertura humanizada, com histórias de perdas familiares relacionadas à pandemia e demandas de movimentos sociais. Em alguns poucos casos, a insistência do profissional com a pauta rende uma matéria sobre esses temas, desde que não contenha críticas ao governo.

Censura e governismo

São utilizadas diferentes táticas de censura, como o atraso de horas na publicação de reportagens e conteúdos colocados no ar sem os metadados necessários para que eles apareçam em mecanismos de busca como o Google. Ou seja, as reportagens desaparecem.

O jornalismo é o alvo central de decisões autoritárias e colegas têm sofrido perseguição até com mudança compulsória de setor. Repórteres recebem pautas vexatórias ou absurdas, com destaques, enfoques e temas favoráveis ao governo ou que apenas promovem a imagem do presidente e de ministros de Estado. Vozes dissonantes – incluindo presidentes e autoridades dos Poderes Judiciário e Legislativo —são silenciadas. Jornalistas são constrangidos diariamente a ignorar assuntos relevantes do dia ou fazer uma abordagem superficial que não desagrade.

Destacamos o vergonhoso episódio de transmissão da seleção brasileira de futebol, no qual o narrador saudou o presidente Bolsonaro. Além desse evento, há outros sem nenhuma relevância, como a participação do presidente em jogo beneficente, em infindáveis formaturas militares ou nos mais de 10 minutos em que Bolsonaro apareceu ao vivo acenando para carros em uma rodovia.

Leia ainda: Indígenas denunciam censura no jornalismo da EBC durante a pandemia

As redes sociais foram apropriadas para fazer propaganda governamental, com publicações coordenadas em todos perfis da casa de assuntos de interesse do governo – como a campanha do PIX – e com conteúdo sem nenhuma relação com as emissoras públicas Lembramos também o fim do perfil EBC na Rede e o apagamento de publicações antigas. Além de orientações de censura prévia, com a divulgação de lista de assuntos permitidos para publicação e o veto a assuntos "sensíveis". Entre eles, o caso Beto Freitas, brutalmente assassinado no Carrefour em Porto Alegre, e matérias relacionadas à Pandemia da Covid-19.

Esses episódios poderiam ser caracterizados como crime contra o princípio constitucional da impessoalidade na administração pública, já que não é permitido o uso de meios de comunicação públicos ou estatais para promoção pessoal.

Ataques à EBC e a seus funcionários

Convivemos com a permanente ameaça de fechamento de emissoras históricas de rádios e a privatização da própria EBC.

RESSALTAMOS que extinguir a empresa deixaria órfãs 7 mil rádios por todo o país. As emissoras baixam conteúdo diariamente da Radioagência Nacional, que publica uma média de 80 matérias por dia para utilização gratuita. Também deixaria sem conteúdo qualificado um número incalculável de veículos pelo país que reproduzem fotos e notícias gratuitamente da Agência Brasil.

Em meio a uma pandemia que manteve as pessoas em casa, precisamos lembrar que a TV Brasil tem a maior programação infantil em canal aberto e um dos mais premiados programas de jornalismo da televisão brasileira: o Caminhos da Reportagem. A emissora também exibe shows e apresentações de artistas que não têm espaço nos canais privados.

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Não poderíamos deixar de mencionar a necessidade de uma política de valorização profissional, como a aprovação do Plano de Cargos e Salários, do Acordo Coletivo de Trabalho para 2021 e a redução de jornada de 1 hora para as mães que amamentam – realidade em empresas públicas como a Embrapa, o Inep, tribunais superiores e o Congresso Nacional.

Fim do chapa-branquismo

O pedido dos empregados e empregadas da EBC para 2021 é que possamos ser referência em jornalismo e voltar a fazer programas de rádio e de TV de excelência. Queremos ter orgulho de trabalhar na EBC e em todos os seus veículos e setores.

Convidamos, mais uma vez, o Ministério Público Federal (MPF) a cumprir a sua função de fiscalizar a Lei da EBC e o uso abusivo e reiterado dos veículos públicos para promoção pessoal do presidente da república, seus ministros e de seu projeto político.

Reiteramos: não servimos a interesses de governo, qualquer que seja ele, nem para promoção pessoal de figuras públicas ou proselitismo. Esse não é nosso papel e repudiamos a insistente interferência do governo federal nas redações da empresa. Assim como repudiamos e nos envergonhamos com a passividade de parte dos atuais gestores - concursados - que aceitam esse papel e pressionam colegas a se submeterem.

A EBC NÃO PERTENCE AO GOVERNO! A EBC É DO POVO!

A EBC é responsável por sete emissoras de rádio (Nacional FM Brasília; Nacional Brasília AM, Nacional Rio AM, Nacional Alto Solimões AM, Nacional da Amazônia, MEC FM Rio, MEC AM Rio) e duas retransmissoras (MEC AM Brasília e Nacional Alto Solimões FM), pela TV Brasil e produz, além do conteúdo jornalístico, programas de entretenimento e culturais.

A empresa responde também pela formação da Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP), atualmente consolidada com 33 emissoras de TV afiliadas e 11 de rádio.

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Tem, ainda, duas agências públicas de notícias: a Agência Brasil e a Radioagência Nacional.

Por meio de contrato firmado com a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, cabe à EBC Serviços produzir a TV Brasil Gov, A Voz do Brasil e gerenciar a Rede Nacional de Rádio, além de licenciar os programas dos veículos da EBC, fornece monitoramento e análise de mídias sociais e realiza todo o trabalho de publicidade legal para os órgãos federais.

Carta aprovada por unanimidade em assembleia pelos empregados e empregadas da EBC".

Procurada pelo Brasil de Fato para responder aos pontos da 'carta aberta', a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) não se pronunciou até o fechamento deste texto, às 19h de sexta-feira (12).

 

Edição: Rogério Jordão