Como esperado, há enorme escassez de vacinas contra a covid-19 no país. “Eu imaginava que isso pudesse ocorrer. Nada foi feito para que tivéssemos vacina. Houve uma política deliberada de se esperar que a própria doença imunizasse por efeito de rebanho”, diz o infectologista Hélio Bacha, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
“É claro que isso não ocorreu, e então ficamos numa desvantagem perante o mundo muito grande”, acrescenta.
Nesta segunda-feira (15), o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), anunciou que, sem receber novas doses, o calendário de vacinação será suspenso. “Teremos que interromper amanhã nossa campanha”, escreveu, no Twitter. A administração municipal prevê a retomada na semana que vem, caso se confirme a chegada de novo lote da CoronaVac, do Instituto Butantã.
Recebi a notícia de q ñ chegaram novas doses. Teremos que interromper amanhã nossa campanha. Hj vacinamos pessoas de 84 anos e amanhã de 83. Estamos prontos e já vacinamos 244.852 pessoas. Só precisamos q a vacina chegue. Nova leva deve chegar do Butanta na próxima semana. pic.twitter.com/sFSoZQPpay
— Eduardo Paes (@eduardopaes) February 15, 2021
Já no estado de São Paulo, a imunização de pessoas entre 80 e 84 anos será iniciada somente em 1º de março.
Em relação à Bahia, há dois dias o governo anunciou ter entrado com petição junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para forçar a análise e importação de imunizantes, “ainda que sem registro” na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A petição justifica o pedido pela “gravidade da situação sanitária” e cita especificamente a Sputnik V, da Rússia, que já é aplicada na Argentina.
Números da vacina no Brasil
Até o momento, menos de 12 milhões de doses foram distribuídas no país, das quais 9,8 milhões do Butantã (com a farmacêutica chinesa SinoVac) e 2 milhões de Oxford (em parceria com a Fiocruz). A quantidade é suficiente para vacinar 6 milhões de pessoas.
Além da falta de vacina, parte da população se encarrega de disseminar o vírus, incentivada pelo governo de Jair Bolsonaro. Neste fim de semana de Carnaval, houve aglomerações, festas, praias lotadas e multidões sem máscaras por todo o país.
“Essa doença aí não existe, é uma mentira criada pelo governador e pelos chineses para tirar a liberdade da gente”, afirmou um advogado aposentado em uma praia lotada no litoral paulista, segundo reportagem do Uol.
“Meu médico já tinha me falado que isso aí era uma gripe fraquinha, que se tomar o 'kit covid' do Bolsonaro, o vírus morre na hora”, acrescentou o homem.
Venda de vacinas
Diante da falta de vacinas, segundo informa a CNN Brasil, clínicas de São Paulo estão negociando a venda da vacina indiana Covaxin por R$ 1.400 pelas duas doses. Bacha caracteriza tal prática como uma “iniquidade”.
“Essa condição de desigualdade é criminosa, não é? Só para o pessoal da primeira classe? Não só é crime, como é ineficaz”, diz, em entrevista à RBA.
“Não é a pessoa que tem que ser vacinada, é a população. O efeito da vacina é criar obstáculos à transmissão do vírus. Para isso, precisamos vacinar o maior número de pessoas no tempo mais rápido que conseguirmos.”
Leia, a seguir, a entrevista com o infectologista Hélio Bacha
Qual sua opinião sobre a falta de vacinas?
Eu imaginava que isso pudesse ocorrer, porque nada foi feito para que tivéssemos vacina. Houve uma política deliberada de se esperar que a própria doença imunizasse por efeito de rebanho. Isso foi anunciado. Em agosto, quando seria o momento de disputar o lugar na fila com outros países que compravam a vacina, a orientação foi esperar, que o pior já havia passado e nós estaríamos recuperando a condição de normalidade através da imunidade de rebanho.
É claro que isso não ocorreu, e então ficamos numa desvantagem perante o mundo muito grande. E todo o início da vacinação foi feito sem nenhum preparo, com um discurso de que já tínhamos uma estrutura de vacinação boa – o que é verdade, temos uma das melhores do mundo. Mas a vacinação para cada tipo de doença pressupõe uma organização diferente. E não tivemos organização mínima, nem de compra, nem de distribuição, nem de calcular que a vacina iria faltar.
Quais são suas expectativas nesse cenário?
Teremos que correr, para ganhar o tempo que perdemos.
E isso pode acontecer, levando em conta a “política” do governo Bolsonaro?
Espero que sim. Mas não vejo nenhum esforço para que isso ocorra, a não ser discursos otimistas e desvinculados de uma prática efetiva de disputa pela compra de vacinas no mundo. Segundo algumas teses, em função das dificuldades seria possível misturar vacinas, por exemplo a pessoa tomar a primeira dose de uma fabricante e a segunda de outra…
Isso ainda está para ser demonstrado. Há várias fórmulas de se tentar o menor dano em função da escassez. A solução boa é a aquisição de vacinas.
Qual sua opinião sobre o papel da Anvisa, que, segundo algumas análises, está politicamente aparelhada. Não lhe parece que diante da emergência ela é muito burocrática?
Acho que o maior problema não está na Anvisa. É apenas um órgão fiscalizador. A questão da Anvisa deveria ter inclusive sido prevista por quem planeja a vacinação, e já deveria contar com esse tempo de análise da Anvisa. O problema está nas autoridades sanitárias que deveriam ter providenciado isso a tempo.
Clínicas de São Paulo estão negociando a venda da vacina indiana Covaxin por R$ 1.400 pelas duas doses. O que o senhor acha dessa alternativa?
Essa iniquidade, essa condição de desigualdade é criminosa, não é? Só para o pessoal da primeira classe? Não só é crime, como é ineficaz. Não se vacina individualmente. Não é a pessoa que tem que ser vacinada, é a população. O efeito da vacina é criar obstáculos à transmissão do vírus. Para isso precisamos vacinar o maior número de pessoas no tempo mais rápido que conseguirmos. Essa é uma forma de enganar os ricos: gastando dinheiro, além de ser iníquo.
O que o senhor acha do comportamento da população?
Uma parte é por ignorância e burrice. E outra parte por má sinalização do governo, que sinaliza que está tudo bem. No momento mais grave da epidemia no país – e estamos no momento mais grave – há uma sinalização de que está tudo normal. As escolas voltam a funcionar, os shoppings estão abertos, os bares, os restaurantes, os cabeleireiros estão abertos. É uma sinalização que as pessoas tendem a interpretar como normalidade. Então, entre ficar num bar, na capital, ou na praia, eles preferem ir para a praia.
Diante desse quadro, a curva de infecções vai certamente aumentar, então…
Ah, claro. Vai aumentar ou manter esse nível altíssimo. O que é uma desgraça e uma infelicidade, de qualquer forma. Já temos um número muito alto de casos. Janeiro cumpriu a previsão de ser um mês de trevas, na questão sanitária. Espero que fevereiro não seja pior. Eu gostaria que melhorasse, mas para isso era melhor termos um isolamento social, um lockdown, mais curto e intermitente, do que fazermos essa política de dissociar a gravidade da pandemia das iniciativas de isolamento social.