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Não é um país, é uma vala coletiva

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O saldo da mistura de terraplanismo, oportunismo político e compromissos econômicos são mais de 250 mil mortos pela covid-19 - Marcos Corrêa / Fotos Públicas
Bolsonaro busca principalmente a retomada de apoio popular, resultado que não é garantido

Na contramão mundial, a pandemia segue descontrolada no Brasil. Mas que ninguém espere uma solução à vista, pois Bolsonaro está ocupado blefando contra o mercado financeiro e as instituições seguem funcionando para acalmar as bolsas.

1. A derrota de uma geração. Um ano após o início da pandemia, o Brasil entra para a história da humanidade com o governo que rejeitou todas as medidas racionais de combate ao vírus, do isolamento à vacina. O saldo da mistura de terraplanismo, oportunismo político e compromissos econômicos são mais de 250 mil mortos ou uma Hiroshima e Nagasaki brasileiras. Como se não bastasse, hoje, pelo menos sete estados estão com picos mais altos de mortes do que em 2020. A onda se dirige ao sul e sudeste: São Paulo e Rio Grande do Sul, por exemplo, estão prestes a colapsar, com as novas cepas atingindo os mais jovens e mais capitais aumentando o toque de recolher. Para comemorar a sequência de mais de 30 dias acima de mil mortes diárias, Jair Bolsonaro desaconselhou o uso de máscaras no pior dia de toda a pandemia e o especialista em logística general Pazuello se dá ao luxo de inverter a remessa de vacinas do Amazonas para o Amapá.

Na prática, Bolsonaro decidiu tomar caldo de cana, comer pastel, limpar a barra do filho e deixar que os outros resolvam o problema. Primeiro, o STF autorizou Estados e municípios a importarem vacinas registradas por autoridade sanitária estrangeira, caso a Anvisa não cumpra o prazo de 72 horas para conceder o aval. Depois, a Câmara aprovou a MP 1026/21 que, entre outras facilidades, dispensa a licitação e a adoção de regras mais flexíveis para os contratos para aquisição de vacinas. A mesma MP atende o lobby da União Química para acelerar a liberação da Sputnik V no país. Combinadas, a decisão do STF e a MP enfraquecem a Anvisa. Agora, o Senado discute um projeto do próprio presidente Rodrigo Pacheco para facilitar a aquisição privada de vacinas e a contratação de seguros por municípios e Estados. Pelo menos 16 estados já negociam a compra por conta própria das vacinas. Em suma, a omissão de Bolsonaro vai obrigar Estados e municípios a resolverem por conta própria o enfrentamento da pandemia, assumindo todos os ônus.

2. Cheiro de gasolina. Num cenário onde os fracassos vão se acumulando, sem auxílio emergencial, com aumento da inflação e agravamento da pandemia, Bolsonaro jogou uma bomba no tabuleiro: anunciou a troca do presidente da Petrobras. O objetivo é transformar o preço dos combustíveis numa batalha estratégica. Isto vem se desenhando desde que ele propôs a alteração na cobrança do ICMS sobre os combustíveis há algumas semanas atrás. A real motivação da intervenção não é o medo de uma greve de caminhoneiros, como sonha parte da esquerda, nem o controle da inflação, já que o preço do óleo de soja e do arroz, por exemplo, aumentaram mais do que o do diesel. Bolsonaro busca principalmente a retomada de apoio popular, resultado que não é garantido. Ao mesmo tempo, tenta recuperar a iniciativa política, para compensar o protagonismo do Congresso e do STF, obtidos com o caso do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e com a discussão da vacina. Mas a medida extrapolou claramente os limites impostos pelo mercado financeiro, já que nesta área Bolsonaro foi eleito para obedecer e não para mandar.

O método de Bolsonaro, mais uma vez, incluiu a mobilização de sua rede de apoio para linchar o atual presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, nas redes sociais. Certamente o novo indicado, gen. Silva e Luna,  não está à altura de um neoliberal de carteirinha como Castello Branco, mas também não é nenhum aventureiro, sendo considerado um administrador competente e moderado, além de contar com o apoio do ex-presidente Michel Temer. Isto é importante, pois foi na gestão de Temer que o então presidente da Petrobras, Pedro Parente, instituiu a chamada política de Preço de Paridade de Importação (PPI), que vincula os preços internos à cotação do mercado internacional. A nova política representou um aumento dos benefícios aos investidores privados, de forma que “de 2018 para 2019 o lucro distribuído para os acionistas cresceu 51%” em detrimento do Estado brasileiro, como argumenta Juliane Furno.

3. O blefe do capitão. A resposta do mercado financeiro foi instaurar a desconfiança em relação a Bolsonaro, com uma estrondosa queda nas ações da Petrobras, e tentar blindar o processo decisório com a convocação de uma assembleia geral extraordinária de acionistas. O alvoroço se deve às dúvidas sobre as verdadeiras intenções do capitão e sobre até onde ele está disposto a ir. Neste sentido, as comparações entre Bolsonaro e Dilma servem como um alerta ou até mesmo um ultimato. Mas o verdadeiro receio do mercado financeiro parece ser o de que se abra um precedente para legitimar intervenções em outras empresas estatais e mistas, como aliás Bolsonaro ameaçou fazer em relação ao setor elétrico, seguido de protestos da presidente da Eletrobras, Elvira Cavalcanti, que saiu em defesa dos investidores. Consolidado o precedente sem protestos, o caminho estaria aberto para uma escalada do bolsonarismo para a ocupação de espaços de poder rumo a 2022, com a distribuição de cargos para o centrão e os militares, avalia Vera Magalhães.

Já Eduardo Maretti alerta que faz parte do jogo político de Bolsonaro “esticar a corda e depois voltar atrás” com objetivos claramente eleitorais. O problema é que o ideal do mercado financeiro é claro: as empresas estatais e mistas devem seguir o padrão do Banco Central, com autonomia praticamente absoluta em relação às políticas de governo. E, neste caso, blefes não são bem aceitos. Mas Bolsonaro sabe dos limites de seu poder. O seu dilema agora é que, depois de ter se colocado na ofensiva, terá que arrancar algum resultado. Já prevendo uma derrota na mudança de política na Petrobras, mira novamente nos tributos estaduais ao obrigar por decreto os postos de combustíveis a declararem a composição final dos preços para os consumidores. O outro artifício seria reduzir os impostos federais sobre os combustíveis, mas para isso seria preciso contornar a lei de responsabilidade fiscal, medida que já é estudada no congresso por meio de uma cláusula de calamidade pública inserida na PEC emergencial.

4. Patinho feio. Quem ficou em maus lençóis com as aventuras do capitão foi o ministro da Economia Paulo Guedes que, entre contrariar Bolsonaro ou os investidores da Petrobras, optou pelo silêncio. É interessante notar como o clima entre os dois é um termômetro da relação entre os mercados e o governo. O constrangimento foi tamanho que nem na reunião da OCDE, instituição que Guedes tanto admira, ele esteve presente. Não é a primeira vez que isto acontece. Segundo Thais Carrança, desde o início do mandato houve pelo menos dez situações em que o ministro foi escanteado. Mas dessa vez o baque foi maior e Guedes, que já vinha em processo de fritura, agora chega às beiras da humilhação pública. Afinal, ele também vai deixando de ser uma figura confiável aos olhos das finanças. Como revelou Thaís Oyama, um personagem de peso da Faria Lima comentou essa semana que “Bolsonaro não cometeu estelionato, sempre foi o que é, só não via quem não queria. Quem nos traiu foi Paulo Guedes”.

Além da intervenção na Petrobras, e da possibilidade de demissão do secretário especial da Fazenda Waldery Rodrigues, deve somar-se às derrotas de Guedes, a retomada do auxílio emergencial através da flexibilização de regras fiscais, proposta que atinge a cláusula sagrada do teto de gastos do ministro. Apesar dos reveses, ele está convicto de que está no lugar certo, e não pretende abandonar o cargo. Na quarta-feira (24), Bolsonaro aproveitou a solenidade de sanção da autonomia do Banco Central para fazer as pazes com os mercados e com seu ministro, dizendo que Guedes é “uma âncora” para o seu governo. O termo foi usado no sentido positivo, de que ele ajuda a manter o governo no rumo certo. Mas as âncoras são pesadas demais e para bom entendedor, meias palavras bastam.

5. Coração bandido. Como pedido de reconciliação com o mercado, Bolsonaro, Lira e Rodrigo Pacheco anunciaram a Medida Provisória da Privatização da Eletrobras no dia seguinte à queda dos preços das estatais. A MP prevê um aumento do capital da empresa antes de sua privatização. Apesar de Lira afirmar que a votação da MP deve ocorrer nos próximos dias, há duas questões sensíveis no meio do caminho: as reestruturações societárias da Eletronuclear e da Itaipu Binacional. A proposta define que a União ficará autorizada a criar sociedade de economia mista ou empresa pública para manter essas duas empresas que hoje estão vinculadas à Eletrobras. Para os consumidores não há motivo para comemoração: a conta de luz pode aumentar até 16,7% no primeiro momento e elevar o custo de toda a cadeia de produção em R$ 460 bilhões por 30 anos, segundo estimativa do Coletivo Nacional de Eletricitários.

Por conta disso, a privatização não vai ter vida fácil: os partidos de oposição já pediram a devolução da MP por inconstitucionalidade e as bancadas do norte, nordeste e Minas também prometem barrar a proposta. Por conta disso, o governo fez questão de não deixar dúvidas sobre as suas intenções. Nesta semana, foram anunciados ainda o decreto sobre o Programa Nacional de Desestatização - que prevê a privatização de 24 aeroportos, incluindo Congonhas e Santos Dumont, mais 13 trechos de rodovias e os Portos de Suape (PE), Santos (SP), Pelotas (RS) e Maceió (AL) - além do projeto que inicia a privatização dos Correios.  Ainda que as ações da Eletrobras tenham disparado na bolsa, o mercado é um noivo interesseiro e dá sinais de que não aceitou o flerte e desconfia que os anúncios são jogos de cena.

6. Carregador de piano. Não é só em relação às vacinas e apaziguando o mercado que o Congresso fez o trabalho duro para Bolsonaro. Arthur Lira tentou reunir os maiores desejos do governo e do mercado em uma única PEC Emergencial e quis colocá-la em votação com urgência. A ideia é resolver a questão do auxílio emergencial, numa versão raquítica de 4 parcelas de R$250 para 40 milhões de pessoas, sem que o governo precise realizar cortes ou contrapartidas. Desta forma, a PEC liberaria a pedalada, sem contar o auxílio no teto de gastos e na regra de ouro fiscal. Mas, ficam proibidos o aumento de salários e a progressão de servidores, além de criar um "regime facilitado de contratações" para arrebentar logo com os direitos trabalhistas na União. Além disso, estabelece uma série de gatilhos aos Estados e municípios para as mesmas proibições de aumento, progressões e concursos caso as despesas correntes estejam acima de 85% das receitas correntes.

A PEC ainda extingue o repasse do PIS/PASEP para o BNDES, o que seria mortal para o Banco. Para colocar a cereja no bolo dos chorosos liberais, a proposta ainda acaba com a vinculação obrigatória de despesas com saúde e educação. Isso depois de um ano de pandemia, com a saúde pública colapsando e as escolas sem estrutura para um retorno seguro. A desvinculação também deveria jogar mais água no moinho das emendas, aumentando o controle dos parlamentares sobre o orçamento. Foi muita sede ao pote de maldades. Capaz de assustar até a insuspeita liberal Miriam Leitão.  A oposição, porém, conseguiu barrar a votação nesta semana  e o MPF também se manifestou contrário à desvinculação da educação e da saúde, sinal de que a PEC pode chegar menos musculosa para votação ou continuar em disputa no judiciário. E ainda que o tão falado auxílio emergencial nem tenha saído do papel, Bolsonaro já faz novas promessas de reformulação do bolsa família para substituí-lo no futuro.

7. Gangues de Curitiba. Atuar por fora da lei não era uma exclusividade de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, mas um padrão que se estendia a todos os envolvidos na Operação Lava Jato, desde o juiz, os procuradores e a Polícia Federal. Como comprovam as mensagens vazadas entre os procuradores Deltan Dallagnol e Orlando Martello Júnior, que relatam que a delegada Erika Marena forjou um depoimento que não existiu. Os próprios procuradores admitem que Marena provavelmente forjou outros depoimentos, como o do lobista Hamilton Padilha. Para advogados consultados pelo Brasil 247, os fatos são gravíssimos e, caso confirmados, configuram crimes como falsidade ideológica, prevaricação e fraude processual. Nos bastidores, o STF pressiona para que o Ministério da Justiça, a quem a Polícia Federal é subordinada, investigue a delegada. Érika Marena, que também fez parte da equipe de Sérgio Moro no Ministério da Justiça, tem no currículo ainda o episódio que levou ao sucídio do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier, além de processar jornalistas, blogs, o facebook e professores. Não é só a delegada que tem tido problemas com as novas revelações.

O Conselho Nacional do Ministério Público recebeu mais um pedido para que o caso de Deltan Dallagnol seja encaminhado para a Corregedoria do MP. O mecanismo da Lava Jato ramificou em outros esquemas, como o do advogado Antônio Figueiredo Basto, o “rei das delações”, pelo número de acordos construídos com a Operação no Rio de Janeiro, e que agora é investigado por produzir delações a partir do suborno de procuradores e policiais federais. Diante do chumbo grosso, apenas os procuradores do MP, corporativamente, saíram em defesa da Operação: enquanto o MPF do Distrito federal pediu (e não levou) a prisão dos hackers que vazaram as mensagens, subprocuradores querem impedir que o STJ investigue tentativas de intimidação do tribunal pela Lava Jato. Já a campanha pela anulação dos julgamentos de Lula ganha um novo gás e anuncia uma plataforma para pressionar diretamente os ministros do STF pela anulação.

8. Ponto Final: nossas recomendações.

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Ponto é uma publicação do Brasil de Fato. Editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Rogério Jordão