Se todas as informações são igualmente confiáveis, como distingui-las das falsas?
Por Marilia Lomanto Veloso*
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem,
Cegos que vendo, não veem.
José Saramago (Ensaio sobre a cegueira)
Quais as “razões ocultas” que mantêm Jair Bolsonaro isento de responsabilidade por suas práticas destrutivas de uma ordem democraticamente constituída, acumulando destroços do que se construiu com dignidade e respeito em uma nação?
Noticiários, blogs, mídias, livros, ações jurídicas estouram aqui e mundo afora sobre o homem apontado como “o pior dos 38 presidentes da história republicana”. Luiz Cláudio Cunha, jornalista, consultor da Comissão Nacional da Verdade, revela o esforço cotidiano da imprensa e dos jornalistas para “qualificar” o governo Bolsonaro, “pelas sandices do que diz e pelos absurdos do que faz na cadeira de presidente da República” e por seu “inesgotável e diário talento vocabular para produzir absurdos, espancar a verdade histórica e aturdir a consciência do país”. Apresenta cerca de 216 adjetivos e vocábulos escavados pela imprensa, para designar Bolsonaro: bronco, chucro, obtuso, inepto, mentecapto, chambão, tosco, tacanho, insolente, arrogante, chulo, asselvajado, nescio, descerebrado, toupeira, carniceiro”.
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Fato é que todo “mostruário” sobre o desserviço que Jair Bolsonaro presta ao Brasil e ao mundo, em especial, à ciência, parece fluir em direção a uma mobilização consistente de simpatizantes seus e partidários da assustadora “nova direita”. Tudo parece ocultar a realidade deixando apenas “visível” o que “queremos ver”.
Verdadeiras ou falsas as notícias “em que medida as pessoas acreditam em pesquisas, levantamentos e estudos”? “Se todas as informações são igualmente confiáveis, como distingui-las das falsas?” Com essas e outras indagações Cynthia Crossen usou sua experiência como editora do Wall Street Journal e em seu livro “O fundo falso das pesquisas: a ciência das verdades torcidas” (1996), revela a profundidade do “engodo artificiosamente manipulado” nesse universo e “quanto isso afeta a todos nós” Em sua trajetória investigativa declara que “todas as informações, ao serem veiculadas, seja de que forma for e, principalmente, quando apoiadas em números ou fatos, têm sempre um significado oculto ou um intuito de persuasão”.
Michel Miaille, um dos pensamentos críticos da ciência jurídica de maior expressão na atualidade, refletindo sobre as questões que “vamos colocar ao direito para que ele nos ‘diga’ o que é”, promete combater ao lado dos que querem saber das realidades “para além das aparências”, avisando que muitas coisas que uma observação inocente teria ocultado serão descobertas, sendo verdadeiro “não haver ciência senão ciência do oculto”. Busca, de forma dialética, suscitar “o que não é visível, para explicar o visível”, recusando-se “a crer e a dizer que a realidade se limita ao visível”. (Introdução Crítica ao Direito. 2005).
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Walter C. Langer, psicanalista que em 1943 teve a tarefa de analisar a mente de Adolf Hitler, torna visível o interior do homem que muitas pessoas não levavam a sério, não ia durar, “mas se tornou a loucura de um país, de parte de um continente”. Um “psicopata neurótico, atormentado por medos, ansiedades, dúvidas” nervoso diante de jornalistas. Langer captou a existência de um relacionamento recíproco entre Hitler e o povo e que “a loucura de um estimula a do outro e vice-versa”. Enxergado como o próprio Espírito Santo, esse homem gerou uma Resolução aprovada por cristãos alemães, afirmando que “A palavra de Hitler é a lei de Deus”.
Estamos no Brasil. Jair Bolsonaro não é Adolf Hitler. Mas tem o poder da mídia. Contou com a sofisticada ciência tecnológica e “viralizou” na internet. Os destroços políticos, econômicos, sociais, éticos do governo Bolsonaro não são camuflados, já eram anunciados desde sua campanha política, de onde se evadiu do debate democrático para se “ocultar” no “invisível”, (mas invencível) texto das plataformas virtuais. Com isso, partilhou mentiras e espalhou “ódio nazista” em velocidade insuperável, expondo a semelhança entre as estratégias desumanas do alemão e do “homem na presidência” do Brasil, identificados em muitos aspectos de crimes contra a humanidade.
No Brasil, como na Alemanha nazista, onde a população alemã “demonizava” quem se opunha ao regime, “inebriada por matérias jornalísticas e propaganda, conquistada através de imagens e da manipulação significantes de forte apelo popular (tais como “inimigo”, “corrupção”, “valores tradicionais”, etc.), os discursos de cunho “transformador/moralizador da política”, de Bolsonaro trapacearam com a ingenuidade da opinião pública.
Na Operação Lava Jato, o escândalo que abalou o mundo, Bolsonaro contou com a cumplicidade do sistema de Justiça, como Hitler com os juízes da Alemanha, tanto que apregoava sem qualquer cuidado ético: “Que teríamos feito sem os juristas alemães?” No Brasil também essa afirmação poderia ser entoada, quando Bolsonaro contou com a “indigência jurídica” agora “revelada” de Sergio Moro e Deltan Dallagnol para garantir a não-participação de Lula na disputa eleitoral. Isso significou a subida da rampa do Planalto para Jair Bolsonaro.
Leonardo Volpatti e Fábio Monteiro Lima se referem a Jair Bolsonaro como “um presidente eleito pelas redes sociais”, “indo a público” através do recurso que a teoria americana aponta como going public , pintando uma imagem no imaginário popular que não se desfigura diante do pior anuncio de seu caráter (ou falta dele). Não obstante se vitimizar como alvo de Fake News, “é o maior criador das mesmas.”
Luís Guilherme Marques Ribeiro, Cristina Lasaitis e Lígia Gurgel se debruçam sobre a página Bolsonaro Zuero 3.0, espaço que exalta Jair Bolsonaro como “o líder ideal para o país, exemplo de político honesto, de virilidade, de cidadão de bem, esperança para a política”, traduzido em uma casta: um “mito”. (Bolsonaro Zuero 3.0: Um estudo sobre as novas articulações do discurso da direita brasileira através das redes sociais. Revista Anagrama: Ano 10 V. 2. 2016). Antonios Terzis, em estudo freudiano sobre sonhos e mitos, alerta que “os mitos podem constituir-se a válvula de segurança por onde são canalizadas as tensões perigosas para a comunidade".
Uma verdade nociva que se oculta no discurso “sórdido e oco” com o qual dialoga com seu cortejo, constituído de vassalos feudais civis e fardados que se colocam “abaixo” da já achatada linha moral de seu governo, sem civilidade, sem consciência social e sem compreensão do mundo como um espaço diverso, plural, habitado por linguagens que se entrelaçam, por sujeitos se solidarizam entre si e com o outro e que compõem um conglomerado politico e social que luta para sobreviver à morte que a ausência do governo Bolsonaro agencia.
Quem é Jair Bolsonaro, sabemos a resposta. Somos cegos que queremos ver. O que provocamos é o saber o que fazer com Jair Bolsonaro, é “desocultar” os fósseis de sua insistência em resistir à indignação por sua presença na história política do país. O que queremos é encontrar um lugar onde Jair Bolsonaro possa escoar sua maldade, alcançada, como no poema épico de Dante Alighieri, “ora através da violência, ora através da fraude”, praticadas, conscientemente, “contra pessoas que confiam nele ou contra estranhos que podem suspeitar dele”. Queremos ser esses estranhos que “suspeitam” dos métodos e das (in)verdades político-jurídicas legitimadas nas cortes e nos espaços onde a desonestidade processual tripudiou sobre as vestes talares e despiu a justiça da honradez e da imparcialidade que tornaram possível a chegada dessa farsa ao poder.
Onde ficará Jair Bolsonaro, se responsabilizado pela violência e pelo engodo de seu governo, demolindo conquistas civilizatórias, ludibriando a letalidade pandêmica?
Dante Alighieri tornaria divina a comédia (e a tragédia) que é Jair Bolsonaro:
É, portanto, no menor dos círculos, no nono e último, junto com Dite (Lúcifer) onde são punidos os que traíram aqueles que neles confiaram.
*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante