MARANHÃO

Ação ajuizada por OAB-MA coloca em risco resolução de conflitos fundiários no estado

Órgão quer que Polícia Militar possa intervir antes da conclusão de processos de mediação, o que é proibido na lei atual

Brasil de Fato | Imperatriz (MA) |

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Reintegração de posse contra a comunidade do Cajueiro, zona rural de São Luís, no Maranhão - Ronaldo Sodré

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional Maranhão (OAB/MA) questionando trecho da lei que criou a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV) pode intensificar os conflitos por terra no estado, avaliam especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato.

Criada em 2015 com a Lei Estadual Nº 10.246/2015, a comissão é responsável por mediar conflitos no campo e na cidade que envolvem populações indígenas, quilombolas e camponeses, por exemplo.

Na ação, protocolada no dia 13 de janeiro, a OAB/MA argumenta que o trecho da lei que torna obrigatória a análise prévia do Poder Executivo para garantir o cumprimento de ordens judiciais, como mandados de reintegração de posse, violariam o princípio da separação dos poderes.

O trecho da lei alvo da ação afirma que a COECV precisa ser informada previamento sobre desapropriações, e que a polícia só pode intervir após concluído o processo de mediação com os moradores.

A OAB-MA pede a suspensão do decreto e afirma que os processos de mediação podem "perdurar por anos sem o devido cumprimento". 

Ao coibir a ação da Polícia Militar, braço do Poder Judiciário, o trecho da lei afetaria a separação dos poderes.

Após repercussão negativa, a Ordem afirmou, em nota, que "o pleito visa justamente aprimorar a atuação do referido órgão, tornando-o mais eficiente, para que se possa garantir o cumprimento das Decisões Judiciais de forma conciliatória sem prejuízo da celeridade".

Mudança pode acirrar conflitos

O Maranhão lidera o ranking de conflitos por terra no país, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgados em 2020.

A violência decorrente do avanço do agronegócio e das mineradoras sobre a Amazônia se destaca no estado, assim como a instalação da base de Alcântara, a expansão do Porto de Itaqui e a especulação de territórios indígenas.


Mediação de conflito entre indígenas Tenentehara, Guajajara e assentados do projeto Camacaoca em Monção-MA / Sedihpop

Vinculada à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP), a COECV reduziu pela metade o número de conflitos fundiários e agrários no Maranhão desde 2015, conforme indicam dados de um relatório elaborado pelo órgão no início de 2020.

Somente em 2020, em plena pandemia, a Federação dos Trabalhadores Rurais do Maranhão (FETAEMA) contabilizou 156 conflitos agrários envolvendo diretamente 9.126 famílias no estado. Partes desses conflitos foram acompanhados por integrantes da COECV e resultaram em resoluções favoráveis.

Para o Secretário de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, Francisco Gonçalves, a ADI ajuizada pela OAB poderá prejudicar milhares de famílias que estão em processo de mediação e articulações institucionais para garantir o devido cumprimento das decisões judiciais.

"A suspensão da legislação que cria a COECV, em todo ou em parte, prejudicará os procedimentos de mediação em curso, podendo resultar em gravíssimas violações de direitos humanos”, pontua Gonçalves.


Comissão de prevenção à violência auxilia Justiça de Grajaú (MA) na resolução de conflito fundiário / Divulgação

Repúdio

Imediatamente após divulgação da ADI, membros da própria OAB, da Defensoria Pública do Maranhão, além de movimentos e entidades da sociedade civil declararam apoio à COECV. As organizações reforçaram apelos à Ordem para considerar o momento de fragilidade de famílias em meio à pandemia.


Bloqueio de trecho da Ferrovia Carajás, próximo ao município de Igarapé do Meio (MA) / MST_MA

Ao Brasil de Fato, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) destacaram que foram surpreendidos com a ação. Para o movimento, a ação da OAB-MA é uma afronta às tentativas de coibir ações violentas de latifundiários no estado, e questiona as reais intenções do órgão.

“Não se trata apenas de questionar prazos dentro da ação. Ela traz outros elementos que precisam ser analisados. A serviço de quem está esse questionamento?", pondera o advogado e um dos dirigentes do MST no Maranhão Aldenir Gomes.

"Os movimentos sociais possuem críticas em relação à Comissão? Sim. Mas nós acreditamos, nós temos clareza e temos esse compromisso de que [as críticas] precisam ser feitas, mas de maneira fundamentada e utilizando-se do espaço e do instrumento correto", completa.

O advogado popular reforça a necessidade de expandir iniciativas de combate e prevenção à violência no Brasil, a exemplo da COECV.

"A gente precisa avançar em políticas dessa natureza, e não regredir. Precisamos aperfeiçoar e também construir estratégias para que a gente possa fortalecer a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, e combater a concentração da terra e todas as formas de concentração e violência do estado brasileiro".


Ex-presidente da OAB se posiciona contrário à ação que questiona constitucionalidade da COECV / Biaman Prado

O ex-presidente da OAB Mário de Andrade Macieira também se manifestou contrário à ação da Ordem, em artigo publicado no Jornal Pequeno. Macieira defende a constitucionalidade da lei e afirma que a legislação "vai ao encontro de todos os princípios fundamentais (...) de modo a evitar mortes, prisões, desabrigo e, sobretudo, mais violência”.

O advogado aproveita a oportunidade para instigar a ação do órgão na resolução de conflitos.

"Melhor seria, nessa linha, [que] fosse questionada a menor aquisição de terras para fins de reforma agrária pelo Governo Federal desde 1995 ou a paralisação de 413 processos de reforma agrária com a interrupção de vistorias e análises sobre desapropriação de imóveis rurais pelo INCRA, o que, sem dúvida alguma, impacta na qualidade de vida do povo maranhense", diz.


Corpo do cacique Firmino Silvino Guajajara é sepultado no Maranhão / Magno Guajajara

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou nota oficial onde declara que “é preocupante que a OAB/MA queira burlar – em plena pandemia do coronavírus que castiga os mais pobres ao favorecer os despejos e as remoções forçadas – a ONU e o próprio STF, que garantiram a suspensão de reintegrações e despejos em um momento de extrema vulnerabilidade que atinge principalmente aos mais impactados pela pandemia”.

Consultada pelo Brasil de Fato, a OAB-MA reforça o teor de nota previamente publicada.  

O órgão afirma que “não é contra a finalidade da COECV, pois defende todas as pautas relativas aos direitos humanos, assim como a necessidade de defender também a segurança jurídica, em especial, no que diz respeito à independência do Poder Judiciário e eficiência de suas decisões”.

Sobre a COECV

Com metodologia inovadora e pioneira no país, a COECV do Maranhão foi criada em 2015, nos moldes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Lei Federal nº 8.629/1993, dos Decretos Federais nº 4.887/2003 e 6.040/2007 e da Lei Estadual nº 9.169/2010.

A COECV é composta por diversos órgãos do Governo do Estado, além de representações de órgãos de fiscalização e controle e representantes de organizações da sociedade civil do campo e da cidade.

Entre os órgãos do poder público estão a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, a Secretaria de Estado de Segurança Pública, a Secretaria de Estado das Cidades, a Secretaria de Estado da Agricultura e Pecuária, o Instituto de Terras do Maranhão, o Comando Geral da Polícia Militar do Maranhão, a Defensoria Pública do Estado do Maranhão e representações convidadas, como do Ministério Público Estadual e de entidades da sociedade civil organizada.

A experiência e as ações desenvolvidas pelo grupo têm sido apresentadas em feiras e reuniões públicas pelo país e serviu de modelo para a criação de comissões semelhantes em outros estados, a exemplo da Paraíba, que criou a sua COECV em 2019.

Edição: Poliana Dallabrida