A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional Maranhão (OAB/MA) questionando trecho da lei que criou a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV) pode intensificar os conflitos por terra no estado, avaliam especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato.
Criada em 2015 com a Lei Estadual Nº 10.246/2015, a comissão é responsável por mediar conflitos no campo e na cidade que envolvem populações indígenas, quilombolas e camponeses, por exemplo.
Na ação, protocolada no dia 13 de janeiro, a OAB/MA argumenta que o trecho da lei que torna obrigatória a análise prévia do Poder Executivo para garantir o cumprimento de ordens judiciais, como mandados de reintegração de posse, violariam o princípio da separação dos poderes.
O trecho da lei alvo da ação afirma que a COECV precisa ser informada previamento sobre desapropriações, e que a polícia só pode intervir após concluído o processo de mediação com os moradores.
A OAB-MA pede a suspensão do decreto e afirma que os processos de mediação podem "perdurar por anos sem o devido cumprimento".
Ao coibir a ação da Polícia Militar, braço do Poder Judiciário, o trecho da lei afetaria a separação dos poderes.
Após repercussão negativa, a Ordem afirmou, em nota, que "o pleito visa justamente aprimorar a atuação do referido órgão, tornando-o mais eficiente, para que se possa garantir o cumprimento das Decisões Judiciais de forma conciliatória sem prejuízo da celeridade".
Mudança pode acirrar conflitos
O Maranhão lidera o ranking de conflitos por terra no país, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgados em 2020.
A violência decorrente do avanço do agronegócio e das mineradoras sobre a Amazônia se destaca no estado, assim como a instalação da base de Alcântara, a expansão do Porto de Itaqui e a especulação de territórios indígenas.
Vinculada à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP), a COECV reduziu pela metade o número de conflitos fundiários e agrários no Maranhão desde 2015, conforme indicam dados de um relatório elaborado pelo órgão no início de 2020.
Somente em 2020, em plena pandemia, a Federação dos Trabalhadores Rurais do Maranhão (FETAEMA) contabilizou 156 conflitos agrários envolvendo diretamente 9.126 famílias no estado. Partes desses conflitos foram acompanhados por integrantes da COECV e resultaram em resoluções favoráveis.
Para o Secretário de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, Francisco Gonçalves, a ADI ajuizada pela OAB poderá prejudicar milhares de famílias que estão em processo de mediação e articulações institucionais para garantir o devido cumprimento das decisões judiciais.
"A suspensão da legislação que cria a COECV, em todo ou em parte, prejudicará os procedimentos de mediação em curso, podendo resultar em gravíssimas violações de direitos humanos”, pontua Gonçalves.
Repúdio
Imediatamente após divulgação da ADI, membros da própria OAB, da Defensoria Pública do Maranhão, além de movimentos e entidades da sociedade civil declararam apoio à COECV. As organizações reforçaram apelos à Ordem para considerar o momento de fragilidade de famílias em meio à pandemia.
Ao Brasil de Fato, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) destacaram que foram surpreendidos com a ação. Para o movimento, a ação da OAB-MA é uma afronta às tentativas de coibir ações violentas de latifundiários no estado, e questiona as reais intenções do órgão.
“Não se trata apenas de questionar prazos dentro da ação. Ela traz outros elementos que precisam ser analisados. A serviço de quem está esse questionamento?", pondera o advogado e um dos dirigentes do MST no Maranhão Aldenir Gomes.
"Os movimentos sociais possuem críticas em relação à Comissão? Sim. Mas nós acreditamos, nós temos clareza e temos esse compromisso de que [as críticas] precisam ser feitas, mas de maneira fundamentada e utilizando-se do espaço e do instrumento correto", completa.
O advogado popular reforça a necessidade de expandir iniciativas de combate e prevenção à violência no Brasil, a exemplo da COECV.
"A gente precisa avançar em políticas dessa natureza, e não regredir. Precisamos aperfeiçoar e também construir estratégias para que a gente possa fortalecer a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras, e combater a concentração da terra e todas as formas de concentração e violência do estado brasileiro".
O ex-presidente da OAB Mário de Andrade Macieira também se manifestou contrário à ação da Ordem, em artigo publicado no Jornal Pequeno. Macieira defende a constitucionalidade da lei e afirma que a legislação "vai ao encontro de todos os princípios fundamentais (...) de modo a evitar mortes, prisões, desabrigo e, sobretudo, mais violência”.
O advogado aproveita a oportunidade para instigar a ação do órgão na resolução de conflitos.
"Melhor seria, nessa linha, [que] fosse questionada a menor aquisição de terras para fins de reforma agrária pelo Governo Federal desde 1995 ou a paralisação de 413 processos de reforma agrária com a interrupção de vistorias e análises sobre desapropriação de imóveis rurais pelo INCRA, o que, sem dúvida alguma, impacta na qualidade de vida do povo maranhense", diz.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou nota oficial onde declara que “é preocupante que a OAB/MA queira burlar – em plena pandemia do coronavírus que castiga os mais pobres ao favorecer os despejos e as remoções forçadas – a ONU e o próprio STF, que garantiram a suspensão de reintegrações e despejos em um momento de extrema vulnerabilidade que atinge principalmente aos mais impactados pela pandemia”.
Consultada pelo Brasil de Fato, a OAB-MA reforça o teor de nota previamente publicada.
O órgão afirma que “não é contra a finalidade da COECV, pois defende todas as pautas relativas aos direitos humanos, assim como a necessidade de defender também a segurança jurídica, em especial, no que diz respeito à independência do Poder Judiciário e eficiência de suas decisões”.
Sobre a COECV
Com metodologia inovadora e pioneira no país, a COECV do Maranhão foi criada em 2015, nos moldes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Lei Federal nº 8.629/1993, dos Decretos Federais nº 4.887/2003 e 6.040/2007 e da Lei Estadual nº 9.169/2010.
A COECV é composta por diversos órgãos do Governo do Estado, além de representações de órgãos de fiscalização e controle e representantes de organizações da sociedade civil do campo e da cidade.
Entre os órgãos do poder público estão a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, a Secretaria de Estado de Segurança Pública, a Secretaria de Estado das Cidades, a Secretaria de Estado da Agricultura e Pecuária, o Instituto de Terras do Maranhão, o Comando Geral da Polícia Militar do Maranhão, a Defensoria Pública do Estado do Maranhão e representações convidadas, como do Ministério Público Estadual e de entidades da sociedade civil organizada.
A experiência e as ações desenvolvidas pelo grupo têm sido apresentadas em feiras e reuniões públicas pelo país e serviu de modelo para a criação de comissões semelhantes em outros estados, a exemplo da Paraíba, que criou a sua COECV em 2019.
Edição: Poliana Dallabrida