Devemos compreender que a dominação patriarcal compartilha uma base ideológica com o racismo e outras formas de opressão de grupo, que não há esperança de que seja erradicada enquanto esses sistemas permanecerem intactos (Bell Hooks, 2019)
A afirmação de Bell Hooks em Erguer a Voz parte da premissa de que não há uma opressão comum, e que o feminismo pensado apenas pela perspectiva do "ser mulher" não abarca toda a estrutura patriarcal que o próprio movimento propõe. E é justamente partindo dessa interseção entre raça, classe, gênero e sexualidade que os feminismos populares se organizam e trabalham.
Fora dos holofotes e das fotografias que circulam o mundo, o feminismo de território na Argentina é um grande movimento no qual muitas podem se fortalecer, trocar e se reconhecer. Esses espaços de construção coletiva e diálogo, a partir da luta antipatriarcal e anticapitalista, ganham especial importância nos bairros e lugares onde a atenção do Estado não chega.
Segundo definido no livro Territórios Feministas: experiências, diálogos e debates do feminismo popular, o feminismo chamado de popular se baseia na organização e na estratégia coletiva. A obra reúne experiências de coletivos feministas em territórios diversos, como comunidades rurais, favelas e presídios.
:: Mulheres se mobilizam pelo auxílio emergencial: “R$ 250 é o almoço de um senador” ::
"Longe de entender o feminismo como uma posição à qual se acessa de forma individual, recuperamos a necessidade de construir feminismos a partir das experiências de organização de sujeitos e sujeitas de diferentes realidades: trabalhadoras, indígenas, negras, lésbicas, trans, gays, pobres, favelados, aborteiras. O feminismo popular tem uma estratégia a longo prazo e uma memória carregada de experiências", descrevem as organizadoras da obra.
Uma das coordenadoras da publicação, Lucía Condenanza, afirma que essas são reflexões em movimento: "É uma construção muito dinâmica, de e com as organizações populares. A partir desse ponto central, fomos definindo, sem encontrar muita referência teórica", comenta.
8M: mulheres organizadas
Com a aproximação do Dia Internacional da Mulher, data importante para os feminismos – e, como de costume com datas representativas na Argentina, se abrevia como 8M –, os movimentos feministas preparam as mobilizações a partir de uma demanda central.
No campo do feminismo popular, tem sido comum surgir a questão do trabalho invisibilizado executado pelas mulheres das comunidades e das famílias.
No espaço de gênero Domitila Chungara, parte da organização popular Resistir y Luchar, o assunto surgiu em rodas de conversas entre moradoras de distintos bairros da periferia de Buenos Aires. "Definindo as demandas para o 8M, falamos muito sobre os trabalhos invisibilizados", conta Carina Peralta, integrante da organização.
8M: com atos virtuais, mulheres cobram vacina, auxílio e impeachment de Bolsonaro
"O trabalho não reconhecido não é só em casa, mas socialmente. Uma companheira destacou outro dia: 'Trabalho invisibilizado: escutar'. Somos nós quem fazemos as comidas dos centros populares, cuidamos dos doentes. Estamos reinventando o trabalho, e a desocupação tem sido cada vez pior na Argentina. Mas fazemos um trabalho autogestivo e cooperativo. Nenhuma se salva sozinha se não nos organizamos", destaca.
O contraste com o feminismo midiático se ressalta nesse contexto, onde esse coletivo, assim como muitos outros, ainda não puderam se intitular como feministas. "Ainda não nos consideramos um grupo feminista porque essa decisão deve partir das companheiras. Somos mulheres e dissidências do suburbano antipatriarcal", conta Carina.
As mulheres dos bairros populares não se identificam com o feminismo de classe média liberal que tanto mostram os meios de comunicação hegemônicos. (Carina Peralta)
Para o 8M, a editora Batalla de Ideas também planeja relançar em breve o livro Territórios Feministas em uma versão digital, para ampliar seu alcance. Os relatos das experiências narradas são um retrato do diálogo e do encontro de vivências tão diferentes quanto enriquecedoras. A troca, uma das premissas do feminismo popular, é um trabalho ativo de aprendizagem contínua.
Troca de experiências
Na província de Córdoba, região central da Argentina, militantes feministas do movimento Pátria Grande conformaram grupos de trabalho e diálogo com moradoras de duas favelas, Los Artesanos e Ciudad Oculta, para buscar soluções para problemas como a deficiência alimentar das crianças.
Com as trocas, surgiram outras questões, como casos de violência de gênero entre as moradoras e discussões com posturas muito diferentes sobre o aborto, por exemplo.
:: "Layout comunista": promotora será investigada por questionar arte do Dia da Mulher ::
"Acontecia, no início, de conformarmos oficinas onde se davam reflexões muito profundas e que, depois, isso tinha consequências nocivas para as companheiras pela reação dos maridos em casa", conta Constanza San Pedro, uma das militantes do Pátria Grande que trabalhou com as moradoras.
"Aprendemos que as propostas deveriam ser feitas na medida em que os efeitos produzidos pudessem ser acompanhados e, principalmente, cuidados. Não se pode ter uma leitura a partir da exterioridade", afirma. Dessa forma, as experiências de troca têm como fator inerente o aprendizado com o lugar do outro, da outra.
Os feminismos populares têm a particularidade de estar ancorados profundamente nos territórios, partindo de uma perspectiva interseccional que nos reconhece como sujeitos de múltiplas opressões. (Constanza San Pedro)
Organização comunitária
Citando novamente Bell Hooks, ela descreve o feminismo como sendo o "movimento político que mais radicalmente se dirige à pessoa, à transformação do eu". E, desse modo, é no reconhecimento das opressões estruturais que se desenlaça o olhar para dentro.
Há mais de 20 anos, o Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD) realiza um trabalho coletivo com projetos autônomos que enfrentam a aguda situação de desigualdade na Argentina.
No movimento, conformou-se a Assembleia de Mulheres, onde muitas integrantes tiveram contato pela primeira vez não só com as pautas feministas, mas também puderam realizar uma abertura pessoal.
Noemy Montes Flores chegou ao MTD pela sua mãe; e foi nesse espaço de militância que escutou, pela primeira vez, a história sobre as dificuldades que enfrentaram na Argentina ao migrar da Bolívia. Também descobriu na área gráfica, grupo de trabalho conformado na organização, uma nova forma de compartilhar e expressar-se.
"É o lugar onde mais me sinto bem. A gráfica é um mundo artístico, um lugar onde a imagem é também a nossa voz. Aqui descobri o que queria estudar, e continuo aprendendo com as companheiras", conta.
"É lindo sair às ruas, erguer a voz, lutar, pedir justiça, construir tudo isso aqui na favela, ao lado de várias outras companheiras migrantes, paraguaias, peruanas, outras bolivianas, e também com argentinas", ressalta. "Assim como eu, várias companheiras descobriram nesse espaço os nossos direitos e o valor que temos, como pessoas, como mulheres."
Edição: Leandro Melito