Entrevista

Maria Flor está "pistola": "Sem cultura, as pessoas param de entender o que é ironia"

Vídeos da atriz interpretando a personagem "Flor Pistola" viralizam ao colocar pra fora angústias dos brasileiros

Ouça o áudio:

Na internet, com a personagem Flor Pistola, Maria Flor faz críticas à gestão de Bolsonaro na pandemia e a crise no Brasil - Reprodução/ Arquivo Pessoal
Esse país, realmente, não pode ficar sem cultura. As pessoas param de entender o que é ironia, piada

Maria Flor "está pistola!". Essa é a nova faceta da atriz de 37 anos, que despeja no Instragram, semanalmente, insatisfações e ansiedades presas na garganta de muita gente por aí.

A personagem, conta ela, nasceu a partir de como os inscritos em seu canal do Youtube, “Flor e Manu” - onde fala, ao lado do companheiro, sobre relacionamentos e temas contemporâneos -  costumam chamá-la, quando reage mais veementemente a determinados assuntos.

Se os vídeos com críticas a Bolsonaro, a má gestão da pandemia no Brasil, a falta de vacinas e o carnaval que não existiu este ano, colocaram a atriz como uma estrela da rede social, também lhe trouxeram toda sorte de críticas e perseguições.

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“Você começa a pensar que esse país, realmente, não pode ficar sem cultura. Porque as pessoas param de entender o que é ironia, absurdo, piada. Não adianta você colocar texto e atuação: Maria Flor. As pessoas não chegam até lá e o vídeo tem três minutos. A pessoa viu 15 segundos, parou e já foi colocar sua foto na internet e te xingar de sei lá o quê, maluca…”, comenta Maria Flor, em uma conversa exclusiva ao BdF Entrevista.

Segundo Flor, as críticas seriam suavizadas, caso fosse um homem dizendo o que diz e como diz: “Eu acho que uma mulher que está revoltada, que está vermelha, que está louca, no sentido de indignação mesmo, é uma coisa que bate nas pessoas. Eu não achei que isso fosse ser tão agressivo para as pessoas. Acho que se fosse um homem fazendo tudo isso, seria muito mais ok”.

Na conversa, a atriz que transita entre o cinema autoral de Proibido Proibir (2006, Jorge Duran), e novelas globais - entrará em cartaz no próximo folhetim da emissora, "Um Lugar ao Sol" - ainda fala sobre cinema, censura, relacionamento na pandemia, fake news e conta o causo de seu tio bolsonarista, que foi acusado em grupo de whatsapp de apoiadores do presidente, de viajar pelo mundo, às custas do dinheiro captado pela atriz, por meio da Lei Rouanet.
 
“Eu falei com vários jornais, mas não adiantou de nada, porque as pessoas continuam colocando a minha foto, como se eu tivesse captado R$ 10 milhões. Quando meu tio viu, me ligou para entender o que era. Tive várias brigas com ele, no Natal, parei de falar e tal. Mas ele nunca tinha me perguntado. Quando aquilo bateu nele, ele disse: “não, a minha sobrinha nunca captou esse dinheiro, não fez nada disso”. E teve que chegar nesse ponto para ele me ligar. Ele é funcionário público, junta o dinheiro dele e viaja. Então é muito louco. A desinformação é uma coisa muito perigosa”.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista:

Brasil de Fato: Que o Brasil fornece matéria prima para a Flor Pistola do Instagram, nós sabemos. Mas de onde veio a ideia, como surgiu?

Maria Flor: No meio de tudo isso que a gente está vivendo, eu estava me sentindo um pouco estúpida com a ferramenta mesmo, de todas as redes sociais. Mas principalmente o Instagram, que é uma rede social que valoriza muito a beleza, o corpo, o que você vai postar. Ainda mais no meu caso, que sou atriz, você fica mostrando sua vida, ou o trabalho que você está fazendo - o que é legal para divulgar esse trabalho: a peça, o filme, a novela, nesse sentido tem uma função - mas muitas vezes ele fica voltado para a divulgação de si: do que você está comendo, se você está malhando.

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E eu fiquei um pouco frustrada com isso. Eu não acho que eu tenho que mostrar a minha vida, ela não tem nada de extraordinário. É só a vida de uma pessoa. Eu não quero ficar mostrando o meu cachorro - que é muito legal, eu gosto muito dele, mas não faz sentido - e acho que o mundo está muito estranho. E como faz para usar a rede para alguma coisa que seja útil?

Não sei se posso dizer que o Flor Pistola é útil, mas alguma coisa que vá um pouco além dessa estupidez da própria ferramenta, que não faz a gente pensar, refletir. É claro que tem vários “instagrams” que fazem, que têm um trabalho muito legal. E eu estava pensando justamente isso: como eu faço para a minha plataforma ser mais do que uma celebridade mostrando sua vida?

Muitas vezes em casa eu ficava muito brava e começava a fazer essa personagem “pistola”, que foi uma coisa que surgiu no meu canal no Youtube, chamado Flor e Manu, com o meu companheiro de vida, o Emanuel Aragão. E a gente fala sobre relacionamento e várias vezes eu ficava brava e os inscritos no canal começaram a falar: “eu adoro quando a Flor fica pistola”. E um dia eu e Emanuel decidimos criar um quadro, falando coisas absurdas, mas que tenham a ver com o que a gente tá vivendo. 

O primeiro vídeo foi super bem, que foi sobre a vacina. E o segundo vídeo viralizou, que é o vídeo que eu falo sobre o impeachment. Porque a Dilma foi impeachmada e o Bolsonaro não. Foi um certo choque, porque a gente não achava que fosse acontecer.

Por um lado foi muito legal, porque o vídeo tem uma coisa que a gente fica tentando manter nos outros, que é uma indignação, que gera um certo um movimento nas pessoas, porque as pessoas se reconhecem na indignação, elas se reconhecem na revolta em relação ao que estamos vivendo. Foi legal perceber que tem gente que não está anestesiada, que também está tentando entender como faz para transformar a situação que a gente está.

E isso também confundiu muito as pessoas, porque muita gente não entende que aquilo tem um enquadramento de personagem, tem uma cartela, um trabalho de pensar o que eu vou falar, o fio que conduz aquele vídeo. Apesar de ser uma improvisação, ele tem uma condução, tem um tema, um certo roteiro que eu sigo.

E têm sido constantes os ataques nas redes, como tem lidado com isso?

O vídeo do carnaval, inclusive, foi um vídeo que falei: “gente, esse vídeo é pastelão”. Eu estou dizendo que a culpa de não ter carnaval é do Bolsonaro. É óbvio que eu sei que não é assim. Eu achava tão absurdo, que nunca passou pela minha cabeça que as pessoas fossem discutir isso comigo. E as pessoas começaram a dizer: “você não sabe, você não tem formação, você não lê. É óbvio, não tinha vacina em junho, o que você está falando?

E você começa a pensar que esse país, realmente, não pode ficar sem cultura. Porque as pessoas param de entender o que é ironia, absurdo, piada. Não adianta você colocar texto e atuação: Maria Flor. As pessoas não chegam até lá e o vídeo tem três minutos. A pessoa viu 15 segundos, parou e já foi colocar sua foto na internet e te xingar de sei lá o quê, maluca…

O presidente do país, que está no cargo mais alto, que deveria ter respeito pelo próprio cargo

Uma coisa que me preocupa e isso eu acho grave e sério: agride muito às pessoas, eu acho, uma mulher que está revoltada, que está vermelha, que está louca, no sentido de indignação mesmo. É uma coisa que bate nas pessoas. Eu não achei que isso fosse ser tão agressivo para as pessoas. Acho que se fosse um homem fazendo tudo isso, seria muito mais ok. 

As pessoas falam que sou histérica, que sou maluca, que eu tenho que tomar Rivotril, que fumo maconha estragada, que cheiro cocaína, que eu preciso ir para o psiquiatra, que eu sou descompensada, como o meu marido me aguenta, que tinha que se separar de mim. Tudo isso as pessoas escrevem e é uma coisa muito absurda. 

Eu acho muito estranho que o presidente do país, que está no cargo mais alto, que deveria ter respeito pelo próprio cargo, fale uma quantidade de absurdos e isso seja aceito. Ninguém está questionando, quando o Bolsonaro fala, por exemplo, que os jornalistas tinham que pegar as latas de leite condensado e enfiar…

Os apoiadores não falam nada, mas os apoiadores, que se dizem conservadores, ficam muito chocados de uma mulher ficar falando palavrão.

Você comentou sobre a ideia do Flor Pistola ter surgido a partir do canal que mantém com Emanuel no Youtube. Falar sobre relacionamentos, em um momento de pandemia, se tornou uma tarefa importantíssima, não?

O canal me salvou muito na pandemia, porque a gente fez 30 vídeos, todo dia, um vídeo por dia, durante um mês, logo que a gente entrou em lockdown. Os vídeos deram uma saúde mental para a gente. Tínhamos aquilo para colocar as nossas frustrações, os nossos questionamentos. Essa conversa no YouTube funciona e isso é muito legal. 

Ver esses jovens me dá a sensação de que o Brasil tem esperança

O canal também salva nossa relação sempre. Não salva, mas ele ajuda a gente a se relacionar. Tem muita coisa que quando acaba o vídeo, a gente continua falando sobre essas coisas, tomando um cafezinho. O vídeo continua dentro de casa, sem câmera, sem nada. Então isso serve como uma grande terapia de casal, coletiva. A gente aprende muito com o que as pessoas falam e aprende muito fazendo os vídeos. 

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Acho que aprendi muita coisa com o canal, não só relacionado ao feminismo, mas acho até que aprendi coisas como outras dinâmicas de relacionamento: o poliamor, os relacionamentos abertos, os relacionamentos que não são normativos. Tudo isso foi o canal que me ensinou. De olhar e falar: “nossa, que interessante isso. Existe essa outra maneira, então, tem gente que se relaciona assim e está bem assim. Como eu sou careta”. E me perceber careta, que estou velha, isso pra mim seria impossível. Essa galera de 20 anos está maravilhosa, livre, fazendo sexo de uma outra forma, muito mais livre, mais aberta.

E ver esses jovens me dá a sensação de que o Brasil tem esperança. Tem lugar para gente ir, tem gente que está pensando. Mas é aquele clássico: os conservadores puxam pra lá, os progressistas puxam para cá. 

Sua carreira é marcada pela versatilidade de trabalhar com o cinema autoral, independente e ao mesmo tempo, participar de novelas e filmes blockbusters. Como funciona esse equilíbrio?

Meu pai é técnico de som de cinema e sempre foi muito ligado ao cinema alternativo, sempre fez muito documentário e eu frequento o set desde muito pequena. Então o set sempre foi, para mim, um lugar muito fascinante. Eu sou apaixonada pelo set de filmagem.

Inclusive, agora na pandemia, eu tenho uma saudade física do set. Não é nem saudade de estar na frente da câmera, de fazer uma cena. É uma saudade do sentimento que você tem quando está em um set de filmagem, onde as pessoas estão todas trabalhando para que aquilo funcione, que às vezes são dois minutos, não sei nem explicar o que acontece direito.

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Não foi uma escolha pessoal fazer filmes independentes. Foi uma coisa que aconteceu na minha vida. Ela me formou muito. Eu tenho um puta prazer de fazer um filme que eu sei que vai ser muito visto, que vai chegar em vários lugares, que vai chegar no streaming, porque eu acho que o audiovisual tem uma responsabilidade de chegar nas pessoas. Não adianta a gente fazer filmes que fiquem muito restritos a um certo público. E as plataformas de streaming podem fazer isso. A Netflix agora colocou um documentário do Marcelo Gomes lindo, sobre uma região que fabrica calças jeans (“Estou me guardando para quando o carnaval chegar”). 

Ancine possibilitou que outros estados pudessem começar a produzir cinema

Quando eu comecei a ser atriz, o fomento via Ancine (Agência Nacional do Cinema) ainda não existia. A Ancine, que agora se encontra parada, ou andando a passos de tartaruga, ela foi responsável pela incentivo à produção de muitos filmes independentes, que foram para festivais fora [do país], que representaram a nossa cultura, que falaram sobre o nosso país, sobre o nosso povo. 

O Brasil é um país muito grande, com muitas características diferentes em cada região e Ancine possibilitou que outros estados pudessem começar a produzir cinema, que não ficasse só a produção de audiovisual em São Paulo e no Rio de Janeiro. 

Infelizmente, desde o governo Temer, tem rareado bastante e está cada vez mais difícil produzir cinema. Mas ainda sim, o audiovisual tem sobrevivido, tem dado o jeito dele, e a Ancine continua existindo.

Desde então, algumas obras audiovisuais sequer foram lançadas, cineastas foram perseguidos. Vivemos um período de censura na Ancine?

É muito estranho e perigoso o que a gente está vivendo agora. Porque a gente está o tempo todo sendo censurado. Se a gente não é censurado, como por exemplo o Marighella (filme de Wagner Moura, que conta a história do revolucionário, morto pela ditadura, que enfrenta problemas para exibição no Brasil), que deram uma vetada para o filme estrear, a gente está sendo censurado pelas próprias pessoas que discordam do nosso discurso. 

E não discordam do nosso discurso com algum tipo de pensamento: ‘ah, eu sou conservador, eu discordo por isso e isso. Não. É sempre uma fala impositiva, que não leva ninguém a lugar nenhum. Que não abre nenhum tipo de diálogo. É só “a mamata”, “o PT”, “o Lula”, “a Dilma”, e isso não abre nada, a gente não consegue conversar com esse tipo de comentário.

A gente está o tempo todo sendo censurado

Se a pessoa fala que discorda do que eu disse e vem conversar comigo, independente de ela pensar diferente de mim, porque pensamos de formas diferentes, que bom que pensamos porque não somos máquinas, somos seres humanos. E pensamos de acordo com aquilo que a gente aprendeu, da família que a gente veio, e está tudo certo, a gente pode discordar.  Eu tenho amigos totalmente de direita, conservadores e está tudo bem. A gente é amigo, a gente conversa e a gente troca coisas. Eu pergunto porque ele pensa assim? E ele me explica, por exemplo, coisas da economia, que eu não entendo. “Ah, então é assim, então a França e a Inglaterra fazem assim”. Tem coisas que eu não sei.

A rede prejudicou a gente nesse sentido, porque a gente lê três posts e acha que sabe tudo, a gente não sabe. Então essa censura eu acho muito grave, a censura da gente com a gente mesmo. E eu acho muito triste as pessoas falarem da mamata, da Lei Rouanet. Porque essas pessoas consumiram muitas obras e conteúdos que só existiram por conta da Lei Rouanet, por exemplo. E elas nem sabem como funciona a Lei, elas não entendem o que é isso. E mais grave, elas nem procuram saber.

A desinformação é uma coisa muito perigosa

Eu fiz o vídeo que viralisou e postaram uma fake news, dizendo que eu tinha captado R$ 10 milhões através da Lei Rouanet, a minha produtora, na verdade. A minha produtora nunca captou através da Lei Rouanet, não que isso seja um problema, pelo contrário: se eu tivesse captado algum dinheiro pela Lei, eu teria gerado emprego, pessoas teriam trabalhado, eu teria feito uma obra, um conteúdo, uma peça de teatro, que seria vista por um monte de gente, com ingressos acessíveis e está tudo certo.

E isso nunca aconteceu. A minha produtora nunca captou pela Lei Rouanet, a minha produtora captou um valor bem mais baixo que esse através da Ancine, da Lei do Audiovisual. Eu falei com vários jornais, com o Estadão Verifica, com a verificação da Piauí, fez matéria, mas não adiantou de nada, porque as pessoas continuam colocando a minha foto, como se eu tivesse captado R$ 10 milhões. 

Mas para contar um causo. Aconteceu isso e foi parar em um grupo bolsonarista, que meu tio faz parte. E começaram a apontar o dedo para o meu tio, dizendo que ele viajava tanto porque a sobrinha pegou dinheiro da Lei Rouanet e deu para ele. E o meu tio, que votou no Bolsonaro, que não é bolsonarista, mas está lá no grupo acompanhando aquelas fake news.

Quando meu tio viu, me ligou para entender como é que era essa coisa da Lei Rouanet. Tive várias brigas com ele, no Natal, parei de falar e tal. Mas ele nunca tinha me perguntado. Quando aquilo bateu nele, ele disse: “não, a minha sobrinha nunca captou esse dinheiro, não fez nada disso”. E teve que chegar nesse ponto para ele me ligar. Ele é funcionário público, junta o dinheiro dele e viaja. É muito louco. A desinformação é uma coisa muito perigosa.

Edição: Marina Duarte de Souza