Ainda prospera o besteirol das propriedades curativas do “tratamento precoce”
O Brasil está estreando mais um ministro da saúde novinho em folha. Marcelo Queiroga inaugura seu ciclo passando pano para a cloroquina e já contemplado com o apelido maroto de “Quedroga”, prenunciando dias de turbulência.
É o quarto cartucho contra a pandemia que o governo Bolsonaro vai testar, após dar chabu com Mandetta, Teich e Pazuello. Está sendo uma derrota épica. Dá-se simultaneamente nas frentes sanitária, política, social, econômica e moral.
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Causa certa surpresa que o deputado Osmar Terra (MDB/RS) tenha novamente perdido a passagem do cavalo encilhado. Fiel ao presidente, seria sua escolha de coração. Em março de 2020, o conselheiro palaciano para assuntos pandêmicos previu que a covid-19 seria um fiasco. Tomaria uma sova da gripe H1N1, fazendo menos de 2,1 mil vítimas fatais. Um ano se passou e os mortos são 282 mil. Digamos que acertou na margem de erro.
Desde o começo, Terra pregou a chamada imunidade de rebanho. Funcionaria mais ou menos assim: sai todo mundo de casa gritando “Perdeu, Corona!” e o vírus bateria em retirada com a cola, se a tiver, entre as pernas, idem.
A gente passaria a interagir com o nosso carrasco e, com o tempo, todos os que não morressem criariam uma couraça inexpugnável e duradoura. Sem contar o boom econômico que um milhão de cadáveres provocariam no ramo de velas, flores, coroas, caixões, covas e jazigos.
Imunidade de rebanho, a propósito, é um termo que se encaixa à perfeição com outra palavrinha de uso malicioso: gado.
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Pela amostragem, o novo ministro, a exemplo do seu logístico antecessor, tende a vocalizar os princípios básicos defendidos no cercadinho do Alvorada por Bolsonaro e nas ruas pelo, com o perdão da grosseria, gado, a saber: aglomeração, liberou geral do comércio, hidroxicloroquina, spray de Israel e nada de lockdown.
Um ano de devastação superior à soma dos mortos pelas bombas atômicas jogadas pelos Estados Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki não foi suficiente para o presidente e o, com o perdão da palavra, gado, admitirem o erro.
Um punhado de governadores e prefeitos, os cientistas, parcela da mídia e boa parte da sociedade civil organizada brecaram a aventura da imunidade de rebanho mesmo sob os gritos de “Todo mundo vai morrer um dia!” vindos de Brasília.
Não conseguiram, porém, impedir que outra imunidade acabasse sendo adquirida por multidões nutridas por picaretas, charlatães e balelas das redes sociais: a imunidade à razão, à lucidez, à congruência, ao conhecimento.
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Ainda prospera o besteirol das propriedades curativas do “tratamento precoce”, que aspirina aniquila o coronavírus, a suspeita ou até convicção de que a vacina causa câncer ou traz junto um chip para controlar a mente das pessoas.
Diante desse panorama, as primeiras palavras do novo ministro acenam com mais do mesmo. De fato, Bolsonaro apenas trocou de extensão. Queiroga prometeu “dar continuidade” ao trabalho de Pazuello. É uma declaração medonha. Afinal, Pazuello assumiu o ministério com 24 mil mortes e o entregou com 282 mil. No pior momento da pandemia, soa como um mau agouro, uma ameaça aterradora.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017).
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante