DIREITOS HUMANOS

Detento morre de covid intubado na UTI em MG, mas atestado de óbito não cita a doença

Para advogada que acompanha realidade do Estado, subnotificação de morte por covid-19 é a regra nos presídios de Minas

Belo Horizonte |
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Subnotificação de casos de contágio e morte por covid são corriqueiros em MG, dizem especialistas - Agência Brasil

Um detento sob responsabilidade do sistema prisional de Minas Gerais foi internado em estado grave com registro clínico e todos os sintomas de uma infecção por covid-19, teve que ser levado à UTI e ser intubado na unidade hospitalar, morreu no dia 25 deste mês, e seu atestado de óbito - emitido por um hospital público - não registra o novo coronavírus como causa da morte ou faz qualquer menção à doença. 

O caso possui uma divergência em dois documentos oficiais que pode ser o primeiro forte indício de uma realidade que já vem sem sendo apontada por especialistas: a subnotificação de casos de morte por covid nos presídios de Minas Gerais.

Paulo Domingos Ribeiro Santos, de 31 anos, foi internado no Hospital Universitário Clemente de Faria, pertencente à Universidade Estadual de Montes Claros (MG), no dia 04 de março, com registro de infecção por coronavírus no protocolo clínico. 21 dias depois, no atestado de óbito, a causa da morte foi descrita como “choque séptico refratário, sepse de foco pulmonar, pneumonia viral”.

:: "Não tem como estimar quantos detentos morreram por covid-19 em MG”, diz advogado::

Em nenhum momento, a infecção por covid-19 aparece no documento chancelado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), como se vê abaixo.


04 de março de 2021: paciente é levado à UTI com "infecção por coronavírus" / Universidade Estadual de Montes Claros

 


23 de março de 2021: secretaria de Segurança Pública de MG informa que paciente morreu de pneumonia viral, e não cita coronavírus / Secretaria de Segurança Pública de MG

O infectologista e pesquisador da UFMG Unaí Tupinambás alerta para a possibilidade de redução da transparência nos dados de contágio e morte da pandemia. “Se a pessoa entra com um diagnóstico de covid-19, era muito mais importante, nesse momento, considerá-la como portadora da doença, porque o cenário epidemiológico está catastrófico. A falta de transparência não é a melhor forma de se enfrentar o problema”, explica. 

Já a advogada Nana Oliveira, presidente da Assessoria Popular Maria Felipa, entidade membro da Frente Estadual pelo Desencarceramento e da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, não tem dúvidas ao afirmar que a subnotificação tem sido corriqueira em todo o estado: 

“São inúmeros os casos em que há subnotificação de mortes por coronavírus entre a comunidade prisional. Em geral, nos documentos aparecem como causa da morte outras doenças associadas a problemas respiratórios graves (como pneumonia viral, constante no atestado de óbito de Ribeiro Santos). O estado não quer se responsabilizar por essas mortes e nem contabilizá-las dentro dos presídios. Isso prejudica ações de controle e fiscalização dentro do sistema carcerário. Quem vai responder por isso?”. 

Em nota, o hospital estadual não explicou a divergência entre dois documentos oficiais, um com a informação de um quadro clínico de covid e outro sem menção à doença na hora de contabilizar a morte. Diz a nota: “A informação médica é soberana. O médico se baseia em seus próprios critérios.”

Questionadas pelo Brasil de Fato, as autoridades do hospital não responderam se o paciente Paulo Domingos Ribeiro Santos, que morreu intubado na ala covid, realizou o exame de PCR para comprovação da doença. 

Já o advogado Gabriel Soares Cardoso deverá representar os interesses da família do homem morto enquanto estava sob tutela do estado. Ele diz: "A Constituição assegura um tratamento digno a todos, inclusive aos detentos. A responsabilidade civil e administrativa do presídio e do Estado (pela morte do paciente) serão discutidas judicialmente."

 

Demora no atendimento e comprometimento do quadro clínico

O prontuário eletrônico de Paulo Domingos Ribeiro Santos mostra que ele foi encaminhado pela UPA Chiquinho Guimarães, onde ficou em observação por um dia, com “franca insuficiência respiratória e saturação de oxigênio de 40%”, já de muito considerado estado de absoluta emergência, risco de vida e que leva a extremo desconforto e desespero pela falta de ar.

Considerando o percentual de saturação, não é de se espantar que no prontuário constasse ainda que Ribeiro Santos reclamava de sufocamento e de sofrer há pelo menos dez dias com sintomas como febre, tosse, perda de olfato e paladar, além de diarreia. 

Ele disse que teria passado esse tempo em um ambiente do Presídio Regional de Montes Claros, onde cumpria pena há dois anos. O paciente relatou ainda que teve contato, antes do isolamento, com outros 13 detentos, entre eles o próprio pai, de 67 anos, com quem dividia cela. 

Uma parente do detento que não quis se identificar contou que só ficou sabendo do problema quando ele chegou à UPA da cidade. Ela também disse que a família não podia fazer visitas, e que o detento nunca saiu da unidade nesse período. Diante disso, para a familiar, Paulo só pode ter contraído o vírus dentro do presídio.

Outras famílias também relataram falta de comunicação com os presos e chegaram a fazer um protesto, divulgado nas redes sociais.

 

Policiais penais podem ser porta de entrada e de saída de COVID-19 

A internação de Ribeiro Santos revela ainda uma outra preocupação. Policiais penais que acompanharam o detendo na ala Covid do Hospital Universitário teriam sido expostos ao vírus, por não receberem equipamentos de proteção adequados.

É o que comprova esse ofício enviado pelo diretor-geral do Presídio Regional de Montes Claros, Helder Soares Veloso, ao juiz da comarca, no dia em que o detento foi internado, 04 de março. Nele, o diretor alerta para o risco a que se submetia os policiais, além de relatar superlotação na unidade e baixo número de servidores. 


Diretor-geral do presídio pede à Justiça a liberação da escolta dos policiais penais dentro do hospital onde estava internado Paulo Domingos Ribeiro Santos / Governo de Minas Gerais

 

Quatro dias depois, o juiz Richardson Xavier Brant concedeu prisão domiciliar ao detento, enquanto durasse o período de internação hospitalar, dispensando-o do uso de tornozeleira e do monitoramento policial durante o tempo de intubação.  

Para a advogada Nana Oliveira, conceder prisão domiciliar neste momento mostra que a decisão judicial não busca preservar a vida: “Esse é o segundo caso que temos conhecimento direto do Poder Judiciário conceder a prisão domiciliar quando a pessoa presa já está à beira da morte. Outros casos podem existir, mas as famílias têm medo ou sequer tem condições de buscar ajuda. No caso do Paulo, ainda por cima, domiciliar enquanto durasse a intubação, ou seja, apenas para dispensar a escolta. A saúde é irrelevante.” 

Para o presidente da Associação do Sistema Socioeducativo e Prisional de Juiz de Fora, Marcelo Rodrigues, os servidores do sistema penal deveriam estar desde o início da pandemia entre os grupos prioritários para vacinação (como constava no plano inicial, mas foi vetado pelo Executivo Federal), tendo em vista o alto risco de transmissão da doença à qual estão expostos.

“Seria importante, também, a testagem para coronavírus dos policiais penais independentemente se estão com sintomas ou não, de 15 em 15 dias. Isso não ocorreu, pelo menos aqui em Juiz de Fora. Além disso, sofremos com a sobrecarga pelo número reduzido de servidores que, com a pandemia, ainda precisam cobrir a ausência daqueles que estão doentes”, explica Rdrigues. 

O representante dos servidores conta que ele mesmo chegou a contrair a covid-19 em fevereiro deste ano, e que essa é a maior preocupação dos trabalhadores do sistema prisional. Ele teve medo de contaminar os pais, já idosos que moram com ele. “Às vezes, deixo a farda na unidade, troco a roupa e quando chego em casa logo tomo banho.”

 

Policiais sem máscara

No presídio de Montes Claros, contudo, pelo menos dois policiais foram flagrados na porta da unidade desrespeitando a norma sanitária de uso da máscara, conforme se vê nas imagens abaixo.


Policial penitenciário usa o celular enquanto permanece sem máscara na entrada de presídio em Montes Claros (MG) / Arquivo pessoal


Policial trabalhando na porta de presídio em Montes Claros não faz uso de máscara / Arquivo pessoal

 

Sobre o assunto, a secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública disse que investiu pouco menos de R$ 13 milhões no reforço de compras de equipamentos de proteção para profissionais do sistema prisional e socioeducativo. Entre os itens, estão luvas, álcool em gel e sabonetes. E, por meio da mão de obra dos presos, produziu quase 5 milhões de máscaras para uso das forças de segurança, incluindo os policiais penais e socioeducativos. Afirmou, porém, que não há como se garantir o controle da utilização por parte dos servidores. 

“Alguns preferem trazer a máscara de casa. Já os detentos só usam máscaras em situações específicas, quando, por exemplo, precisam sair da unidade. Dentro das celas, todos ficam sem máscara”, afirma o policial penal Marcelo Rodrigues. 

Sobre as recomendações oficiais de encaminhamento de presos com suspeita de covid-19, a secretaria informou que há dezenas de protocolos formalizados sobre o assunto, disponíveis no site do governo. Segundo essas recomendações, ao preso deve ser garantido: isolamento imediato, realização de exames e, em caso de confirmação, tratamento segundo protocolo da área da saúde.

Na versão oficial da secretaria: "Em todas as unidades em que há presos com covid-19 confirmados, a desinfecção do ambiente também é imediata e todos os demais detentos passam a usar máscaras, de forma preventiva”. 

Já de acordo com a advogada e presidenta da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação à Liberdade de Minas Gerais e coordenadora da Rede Estadual Pelo Desencarceramento, Maria Teresa dos Santos, os protocolos são sistematicamente descumpridos. “Nós estamos sob uma administração perversa, onde o sistema judiciário não quer tomar conhecimento do que se passa. O que a gente tem é uma tentativa de genocídio da população carcerária de Minas e um poder judiciário se fingindo de cego”, denuncia. 

Para ela, os familiares precisam ter coragem de denunciar nas ouvidorias públicas de justiça. “Para gente ver se com um número grande de denúncias a gente consegue chamar a atenção da mídia, porque quando a gente vai pra mídia eles ficam um pouquinho envergonhados e fazem alguma coisa”. 



Leia, abaixo, nota da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais sobre o detento morto Paulo Domingos Ribeiro dos Santos:

 

Paulo Domingos Ribeiro Santos recebeu atendimento médico no Presídio de Montes Claros II (Regional de Montes Claros) em 5/2 depois de relatar tosses frequentes. O profissional de saúde da unidade constatou o quadro de sinusite e o mesmo recebeu tratamento para tal enfermidade. Em 2/3, ele novamente passou por atendimento médico e, segundo o prontuário, queixou-se mais uma vez de tosse, sem relatar outros sintomas. O quadro de sinusite foi reiterado pelo médico. 

Em 3/3, em checagem de seu estado de saúde pela equipe de enfermagem, Paulo informou que, além da tosse, sentia vômitos e percebeu certa dificuldade em respirar. Diante do exposto, foi imediatamente encaminhado para atendimento externo ao presídio em razão de, naquele horário, a unidade não dispor de médico disponível para atendimento. O deslocamento foi imediato, visando o pronto-atendimento do então detento. Na mesma data, ele foi encaminhado ao Hospital Clemente de Faria, para investigação de infecção por covid-19.

Até 10/3, data em que Paulo foi desligado pelo Poder Judiciário do Sistema Prisional, não havia confirmação do quadro de covid-19. De toda forma, todos os sete detentos que dividiam cela com ele e apresentaram algum sintoma da doença foram testados. Nenhum foi positivado para coronavírus.

Não cabe ao Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG) quaisquer comentários sobre o atestado de óbito do ex-detento. Também ressaltamos que, diferente do exposto, Paulo não estava em isolamento por suspeita de covid-19 dentro da unidade, exatamente pelo relato de diagnóstico reiterado de sinusite relatado nesta nota.

 

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Edição: Vinícius Segalla