“O agravamento da doença é o terror da equipe médica, a sensação de impotência e, muitas vezes, o luto. O profissional tem que juntar todas as suas reservas de energia para reabilitar um paciente, e reservas físicas e emocionais para suportar a demanda”, descreve a fisioterapeuta Vera Lúcia Martins Moraes.
Após o mês mais grave e mortal, até o momento, da pandemia do novo coronavírus no Brasil, abril começou com sinais de uma leve desaceleração na ocupação de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI).
Para quem está na linha de frente, a realidade ainda é de colapso. No Rio Grande do Sul, 94,4% de leitos ocupados, sendo 3.208 pacientes em 3.399 leitos de UTI, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde (SES). Desde o início da pandemia, o estado já registrou 21.018 mortes em decorrência da covid-19.
“A situação que estamos vivendo não se compara a nada do que vivemos no último ano. É caótico. É pesado. É frustrante. Não existem profissionais qualificados que tenham disponibilidade e ânimo. Estamos cansados. E a desenfreada 'abertura de leitos' apenas mascara o colapso na saúde, pública e privada”, afirma a fisioterapeuta Fernanda Mariano Leites.
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Formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1992, Vera Lúcia Martins Moraes também reforça o cenário desolador. “Estamos vivendo uma verdadeira tragédia, fruto da conjunção de vários fatores infames, principalmente o não comprometimento e o negacionismo do poder Executivo com a pandemia, além da falta de adesão às medidas de restrição e uso de máscaras e o atraso na compra de vacinas”, aponta.
Cuidado do leito à recuperação
Profissionais da linha de frente, os fisioterapeutas estão entre aqueles que mais tempo ficam à beira do leito dos pacientes com covid-19.
Estão entre os responsáveis pela avaliação contínua da condição pulmonar e da necessidade de suporte de oxigênio ou ventilatório – como as máscaras de ventilação não invasivas e a ventilação invasiva –, assim como decidem, junto à equipe multiprofissional, o plano terapêutico, além de trabalhar na reabilitação dos pacientes pós-covid.
Apesar da covid-19 ser uma doença sistêmica, o principal sistema comprometido é o respiratório. O comprometimento pulmonar, associado à falta de ar, é o que leva à internação hospitalar.
Nos pacientes pós-covid, são observadas sequelas como dispneia (falta de ar) em momentos de esforço físico, cefaleia, fraqueza e dores no corpo. Em casos de internação prolongada em UTI, chamados de críticos crônicos, há grande impacto na funcionalidade, mobilidade e qualidade de vida.
Nos quadros mais comuns de recuperação, outros sintomas sentidos são a diminuição da capacidade pulmonar, tônus muscular e resistência física. A duração das sequelas, tanto leves, quanto moderadas e graves, ainda é incerta. A certeza é da necessidade de atendimento especializado para reabilitação, reforçam as fisioterapeutas.
Atendendo em casas de longa permanência, como residenciais geriátricos, e em atendimento domiciliar individual, para o caso de pacientes com covid ou após alta hospitalar, Vera Lúcia relata que uma dupla preocupação.
“Não sabemos como eles vão evoluir clinicamente. O quadro pode mudar de um dia para outro. Há também o risco do contágio, apesar de todo o aparato. Isso coloca o profissional no stress de atender em prontidão e, muitas vezes, precisando se afastar do convívio familiar”, explica a fisioterapeuta, que tem atuando na reabilitação de pacientes que já se recuperaram da covid.
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“Pelo que temos visto, a recuperação tem exigido, no mínimo, três meses de trabalho árduo. Dependendo do caso, esse prazo se estende bem mais”, conta.
Doença impõe mudança na dinâmica do dia a dia
Vera Lúcia comenta que a doença mudou a dinâmica dos residenciais geriátricos. Antes, não havia restrições às visitas de familiares, os residentes podiam conviver em locais como o refeitório, nos banhos de sol e podiam sair para passeios. Agora, tudo é restrito.
“Até mesmo o atendimento fisioterapêutico teve que ficar reservado só aos pacientes graves, para diminuir a circulação. Precisamos usar equipamentos de proteção, máscara, jalecos descartáveis, face shield [protetores faciais], luvas, muito álcool gel e muita vigilância para fazer coisas simples do dia a dia, que cercam o atendimento ao paciente. Mesmo assim, tivemos muitas vidas perdidas”, diz.
Nova carga de trabalho, novos desafios
Fisioterapeuta há três anos e meio, Fernanda Mariano Leites atua no Hospital Independência, na capital Porto Alegre, referência em cuidado humanizado no Sistema Único de Saúde (SUS).
A profissional destaca que a quantidade de leitos de UTI no hospital triplicou durante a pandemia. As características e as demandas dos pacientes mudaram. Com isso, veio a necessidade de ampliar a qualificação para entender as especificidades da nova doença.
“O primeiro desafio enfrentado foi o medo de atender pacientes com alta carga viral e lidar com a possibilidade de se contaminar fazendo o que a gente faz todo dia: trabalhar. E ainda assim, com medo, tentar ofertar o melhor cuidado possível àquele paciente”, narra.
No entanto, o maior desafio, segundo a profissional, é acompanhar de perto o paciente e ver a deterioração do seu estado clínico.
“Receber um paciente conversando, contando da sua família, dos últimos dias em casa, dos bichinhos de estimação, às vezes rindo ou participando de algum momento com a equipe, e depois ver a deterioração desse mesmo paciente, com falta de ar, necessitando de intubação, manobra de prona, hemodiálise. Muitas vezes, isso culmina em mais uma derrota para a covid-19. Aceitar isso é o maior desafio”, desabafa.
“Lembra que ele chegou conversando? Ele contou sobre as caminhadas no parque. O outro disse que agora ia parar de fumar. Nós seguramos em sua mão no momento da intubação. Esse mesmo paciente não voltará pra casa”.
Ela corrobora o que outros profissionais da linha de frente e especialistas tem dito reiteradamente sobre o agravamento da doença. “Vemos, na prática, que os pacientes estão chegando mais graves em relação ao que observamos no segundo semestre de 2020, com evolução para piora ventilatória muito mais rápido”, relata.
“Primeiro, acreditávamos que os pacientes estavam chegando tarde no atendimento hospitalar. Com a descoberta das variantes, associamos o agravamento a isso. Hoje é um misto entre a apresentação mais grave da covid-19, a escassez de leitos e de profissionais qualificados”, pontua.
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Em relação aos pacientes pós-covid, Fernanda Leites relata que existe um abismo entre aqueles que saem bem e funcionais do hospital e aqueles que passaram por intubação orotraqueal – introdução de um tubo de ar na traqueia –, manobras de prona, hemodiálise ou traqueostomia.
“Os pacientes críticos crônicos chegam a passar de dois a três meses internados até a alta hospitalar. Quando retornam para casa, têm dificuldade para caminhar, alimentar-se e retomar a atividade ocupacional. Os pacientes que procuram reabilitação pós-covid costumam ser estes últimos, que passaram por um longo período de hospitalização”, relata.
Como profissional do SUS e com experiência no atendimento a populações socioeconômicas desfavorecidas, a fisioterapeuta destaca a dificuldade do acesso à reabilitação por falta de recursos financeiros, disponibilidade familiar, além da baixa oferta do serviço gratuito.
“O fisioterapeuta só está presente no atendimento domiciliar, por exemplo, de forma particular ou por convênio de saúde. Pouquíssimas regiões ou comunidades são favorecidas pelos programas Melhor em Casa ou consultoria com o fisioterapeuta do NASF [Núcleo de Apoio a Saúde da Família]”, destaca.
“Logo, boa parte dos pacientes que recebem alta hospitalar ficam sem assistência fisioterapêutica especializada para reabilitação, assim como sem atenção da equipe multiprofissional, tão importante para a reabilitação plena do indivíduo”.
Exaustão e incredulidade
A sensação de exaustão física, mental e emocional é constante na rotina dos fisioterapeutas.
“Apesar de aprender muito durante o último ano sobre a doença, ninguém ensina como deixar 'os problemas' do trabalho no trabalho. A gente vive a covid 24h por dia. Hoje, evito olhar e ouvir noticiário. A realidade eu vejo dia após dia”, comenta Fernanda Leites, que reforça que a situação no Rio Grande do Sul é desesperadora.
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“Se engana quem acha que os números apresentados no noticiário retratam a realidade. A realidade é que temos pacientes cada vez mais graves e cada vez mais jovens. Profissionais cansados e um guerra sem fim. Estamos exaustos. É triste ver que ainda existem pessoas que ignoram o caos que estamos vivendo. É inevitável se sentir desrespeitado”.
Para Vera Lúcia Moraes, a percepção é de um país em um abismo sem fim. “A vacinação é muito lenta, o vírus é rápido e agressivo. Estamos todos cansados. Ainda assim, a sensação de ajudar alguém a voltar à vida não tem preço. É a vida que segue”, pontua.
Incredulidade é o sentimento da profissional em relação às pessoas que relaxam os cuidados necessários diante do cenário atual. “É inaceitável que, frente a tudo que vemos hoje, tantas mortes, tanto sofrimento, existam pessoas que neguem ou desprezem a vida”, conclui Moraes.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira e Poliana Dallabrida