Nesta quinta-feira (8), celebra-se o Dia Internacional dos Ciganos, em alusão ao 1° Congresso Mundial do Povo Cigano, ocorrido há 50 anos em Londres, na Inglaterra.
O primeiro registro escrito de nossos antepassados ciganos no brasil ocorreu em 1574, data em que o Calon João de Torres e toda sua família chegou ao país expulsos de Portugal simplesmente pelo fato de serem ciganos.
A condenação ao exílio de nossos ancestrais no Brasil foi uma constante durante todo o período colonial, quando milhares de pessoas deste tronco étnico foram expulsas de Portugal, perseguidas, separadas de suas famílias e proibidas de falarem suas línguas. Ao chegarem na colônia, recebiam o mesmo tratamento e eram considerados bandidos perigosos pelas autoridades locais.
Após o fim do século 19, dezenas de famílias de outros troncos étnicos ciganos, especialmente de origem rom, mas também do tronco sinti, aportaram no Brasil, fugindo das guerras europeias ou expulsas, sem cessar, de um país ao outro.
Mesmo no período pós-colonial, seja no Brasil, em Portugal ou em todos os países onde vivem, as comunidades ciganas sempre sofreram políticas persecutórias e anti-ciganas, que reverberam em um racismo estrutural histórico que desemboca em situações de desigualdade, exclusão e vulnerabilidade socioambiental.
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Apesar desta realidade de perseguição, nos constituímos por diferentes etnias, com inúmeros grupos e subgrupos, cada qual com sua história. Mesmo atravessando continentes e mantendo contatos com inúmeros povos e civilizações, nunca iniciamos uma guerra!
Ao longo de nossa jornada milenar e pacífica, acumulamos saberes, filosofias, costumes, tradições e culturas ricas e identidades de resistência.
Deixamos nossas marcas, legados e contribuições às culturas e identidades nacionais de diversos países, incluindo Brasil e Portugal – ainda que estas contribuições estejam invisibilizadas e ausentes nos livros de história.
Tanto a mídia quanto a ciência e as artes construíram visões equivocadas e estereotipadas sobre nós ciganos que persistem e afetam o acesso a serviços básicos de cidadania, como saúde e habitação.
Como consequência, isso também se reflete em menor expectativa de vida, maior mortalidade infantil e maior incidência de doenças crônico-degenerativas como diabetes e hipertensão.
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A maioria das pessoas ciganas não têm acesso à educação e trabalho formal, vivendo na informalidade e com dificuldade para acessar os serviços de aposentadoria e seguridade social.
Políticas afirmativas e a Constituição Federal
Somente após a Constituição Federal de 1988 e a redemocratização do país é que as comunidades ciganas começam a ser olhadas e pensadas pelo Estado brasileiro de outra forma, e não apenas de maneira persecutória e colonialista.
Apesar de pequenos avanços, como a criação do Dia Nacional dos Ciganos em 2006 ou a inclusão do tronco étnico entre os povos e comunidades tradicionais, poucas políticas públicas específicas foram construídas.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), por exemplo, não contabiliza as pessoas ciganas no censo populacional, o que dificulta a elaboração de programas e políticas em campos importantes, como saúde, educação, trabalho, transporte ou mesmo o acesso a aparatos de lazer e cultura. Estima-se que somos mais de 500 mil espalhados por todos os estados brasileiros, mas este número pode ser bem maior.
Devido as problemáticas causadas pela exclusão social, a pandemia do coronavírus acabou nos impactando muito mais que aos outros cidadãos da sociedade majoritária.
Muitas famílias ciganas continuam a viver de forma nômade ou itinerante em barracas, sem acesso a serviços mínimos de infraestrutura como água, luz, coleta de lixo ou esgoto, o que dificulta ações de prevenção ao coronavírus, como o simples ato de lavar as mãos.
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O racismo histórico foi reforçado desde o começo da pandemia. Inúmeras famílias ciganas têm sido expulsas por autoridades de municípios, especialmente na região Sul, simplesmente pelo fato de serem ciganas, acusadas de serem portadores da doença, sem qualquer atendimento ou teste.
Apesar dos esforços e pedidos dos ativistas do movimento cigano brasileiro, o governo federal e a maioria dos governos estaduais não elaboraram planos específicos de combate à prevenção ao covid-19 para pessoas ciganas e não fomos incluídos como público prioritário na vacinação contra a doença.
O fato é que somos cidadãos brasileiros, pagamos impostos e contribuímos para a construção e a consolidação deste país como uma nação. O Estado brasileiro tem uma dívida histórica para com as pessoas ciganas, que necessita urgentemente ser reparada!
Participação coletiva na construção do PL
Precisamos ser reconhecidos como cidadãos e incluídos nas ações, políticas e programas do Estado brasileiro em todos os campos. Daí a importância da construção de um estatuto nacional dos povos ciganos, como prevê o Projeto de Lei (PL) nº 248 de 2015, que cria este documento garantindo direitos e deveres para as comunidades e povos ciganos de todo o território nacional.
O projeto já tramitou por duas comissões do Senado Federal, a de Educação e a de Assuntos Sociais, ambas com relatoria do senador Hélio José (PROS-DF). Atualmente, o PL está em análise na Comissão de Direitos Humanos, sob relatoria do senador Telmário Mota (PROS-RR).
Inicialmente composta por 19 artigos, a proposta, que é acompanhada pela 6ª câmara do Ministério Público Federal (MPF), sofreu emendas e subtrações, dispondo atualmente de 16.
Por intermédio de assessores parlamentares dos senadores Paulo Paim (PT-RS) e Telmário Mota, um grupo no WhatsApp com a participação de lideranças ciganas de distintas associações foi criado em 2020.
Cada um dos 16 artigos foi lido em áudio e compartilhado por texto nesse grupo, e as lideranças ciganas puderam debater e contribuir com o documento. O resultado dessa discussão foi compilado pelos participantes e está nas mãos dos senadores Telmário Mota e Paulo Paim.
A matriz da Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC), localidade em Brasília (DF), protocolou um ofício junto ao Senado Federal solicitando a realização de uma consulta pública que inclua a participação do maior número possível de pessoas e comunidades ciganas.
Devido às medidas de segurança e isolamento social, sugerimos que a consulta pública do PL 248/2015 ocorra de forma virtual, por meio de uma live nacional, com a utilização de telões e todos os mecanismos necessárias nas comunidades ciganas, bem como um plano nacional e regional de divulgação do texto do PL para que a discussão seja ampla.
Ressaltamos que esses procedimentos devem seguir todos os protocolos acerca de consultas públicas prévias, de forma livre e informada, referentes aos povos tradicionais, estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em sua convenção internacional de número 169.
Como demandantes da criação do estatuto nacional dos povos ciganos, a ANEC-DF se colocou à disposição dos senadores para dialogar sobre os próximos passos no trâmite do PL 248/2015, e se comprometeu em articular o máximo de participação possível de todas as lideranças e comunidades nacionais neste grande trabalho de construção e aprovação de tão importante documento!
Edição: Poliana Dallabrida