Na última semana de março, um helicóptero policial tinha seu canhão de luz apontado para os arredores de Echo Park, uma região emergente de Los Angeles, nos Estados Unidos. A aeronave iluminava o mais novo "crime" da região: morar nas ruas. Por terra e ar, dezenas de oficiais expulsavam aqueles com tendas e barracas instaladas na área, sob a ameaça de prender qualquer um que descumprisse a ordem.
O advogado Gary Blasi, que também é professor de direito da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e dedica sua carreira a defender a população mais vulnerável, afirmou ao Brasil de Fato que "a não ser que as pessoas tenham uma alternativa real de abrigo, morar nas ruas não infringe nenhuma lei".
Ainda segundo o professor, a manobra foi feita sob o argumento de que havia oferta de abrigo disponível, o que tornaria obrigatória a saída das pessoas do acampamento.
"O que aconteceu em Echo Park vai servir de modelo para como a cidade de Los Angeles deve enfrentar situações parecidas em outras áreas. Basicamente, o estado vai apelar para a força policial e oferecer um abrigo temporário, em estruturas provisórias", afirma Blasi. Ele acrescenta que "o problema é que essas pessoas ficarão abrigadas por pouco tempo e devem em breve voltar às ruas".
Apesar de se tratar de um problema social, Blasi recorre à matemática para conduzir sua explicação. "Antes mesmo da pandemia, cerca de 600 mil famílias dedicavam mais de 90% de sua renda para o pagamento de aluguéis. Isso significa que, em face de qualquer contratempo, como uma doença ou demissão, famílias inteiras são forçadas à situação de rua."
Programas insuficientes
A arquiteta e urbanista Dana Cuff, professora da UCLA, onde dirige o prestigiado CityLab, traz mais números para explicar a situação. "Cerca de 20 mil indivíduos deixam as ruas para se mudarem para um lar todos os anos em Los Angeles, mas nesse mesmo período outras 25 mil pessoas vão para as ruas."
De acordo com Cuff, além da disparidade de renda, o que colabora para a crise de moradia local é a disparidade entre ganho e gasto. "Uma unidade de moradia social, em Los Angeles, custa algo como US$ 650 mil [cerca de R$ 3,2 milhões] – e isso não é, nem de perto, acessível", pondera.
De acordo com a LA Homeless Services Authority pouco mais de 66 mil pessoas viviam nas ruas da cidade em 2020, o que representa um aumento de 12,7% em relação ao ano anterior.
:: Leia também: Após críticas, Prefeitura de São Paulo retira pedras "anti-moradores de rua" ::
Existem programas federais, como o Section 8, que visam subsidiar lares permanentes para indivíduos experimentando extrema vulnerabilidade social, mas a realidade é que esses e outros projetos assistenciais não atendem a demanda.
"O programa Section 8 está congelado há anos. A última vez que o governo abriu uma espécie de lista de espera, a fila era de algo em torno de 10 anos. Aqui em Los Angeles, quando esse projeto foi retomado em algumas áreas, o sistema de telefonia caiu por conta do volume inesperado de ligações", relembra Blasi. Ela compara o programa a "ganhar na loteria". "E, para os valores de hoje, essa ajuda governamental só permitiria o aluguel de algo precário em regiões muito periféricas".
Contribui para o problema o fato de moradores se reunirem para protestar contra o desenvolvimento de projetos sociais em seus bairros. "Eu diria que todos os bairros de Los Angeles são contra a construção de moradia social em seus limites. E é curioso que as mesmas pessoas que protestam contra o tratamento truculento da polícia e das autoridades em relação aos indivíduos desabrigados, são as mesmas que se opõem a esses projetos. Ninguém os quer por perto", lamenta Dana Cuff.
Não é à toa, portanto, que uma a cada cinco pessoas em condição de rua esteja na cidade de Los Angeles. Já o estado da Califórnia, o mais rico dos Estados Unidos, responde por metade de toda a população desabrigada do país.
"E os números são ainda menos favoráveis para a população negra. Para os afro-americanos, as chances de acabar nas ruas são de seis a dez vezes maiores", pontua o Blasi.
:: Estados Unidos: Desperdício e Produção de Alimentos durante a pandemia ::
Soluções
Para o PhD em sociologia Samuel Lutzker, que estuda acampamentos de desabrigados na cidade, as alternativas apresentadas pelas autoridades não são, até agora, uma resposta definitiva à crise. "Os abrigos têm toque de recolher e regras muito duras, que muitas vezes geram traumas nas pessoas. Além disso, para viver em um desses abrigos ou programas de moradia temporária, esses indivíduos têm de abrir mão de sua comunidade e afetos, como companheiros, amigos e até animais de estimação. Quando se chega nesse ponto de desabrigo, o cuidado da comunidade, na maioria das vezes, é tudo o que essa pessoa tem", contou à reportagem.
Isso não significa, porém, que as pessoas "preferem morar nas ruas". "Todo mundo quer uma moradia, mas num contexto que seja melhor do que o que as pessoas vivem nas ruas", pondera Lutzker.
Ele defende a implementação de programas de larga escala que combatem a desigualdade e a pobreza nos Estados Unidos. "Precisamos mudar para um sistema socialista, ou então não seremos capazes de combater essas formas de desigualdade que nosso capitalismo criou."
Mais do que apenas reparar os danos econômicos, Dana Cuff explica que promover a diversidade representa um benefício social. "Precisamos nos cercar de pessoas diferentes de nós para sermos verdadeiramente civilizados. A sociedade civil pede que estejamos com pessoas que pensam de maneira diferente, têm uma aparência diferente, têm necessidades diferentes e criam seus filhos de maneira diferente. A menos que você tenha isso, você perde sua humanidade fundamental."
Edição: Camila Maciel