Cada artigo é um ponto de pauta para uma agenda política
De jovens candomblecistas que enfrentam intolerância religiosa, até aqueles que disputam narrativas dentro do movimento negro evangélico. De "pretas sapatonas periféricas" que se organizam em Salvador (BA), até um coletivo de hip hop organizado dentro da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó (SC).
:: David Lover e o legado ancestral do Haiti: "A gente é uma mistura de culturas" ::
A diversidade de rostos, crenças, modos de vida e expressões culturais das periferias brasileiras salta aos olhos nas 414 páginas do livro Cultura política nas periferias: estratégias de reexistência, lançado no final de março pela Fundação Perseu Abramo, vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT).
A obra, disponibilizada gratuitamente na internet, reúne 23 artigos de 42 autores, que expressam o olhar de sujeitos, coletivos e organizações periféricas de todas as regiões do país. Nos textos, eles compartilham iniciativas, angústias, desafios e estratégias de resistência no dia a dia.
:: Entre acordes, melodias e astrofísica: conheça o trabalho da artista Marissol Mwaba ::
A troca de experiências, especialmente da juventude negra, em suas múltiplas expressões, é vista como resposta ao genocídio e ao silenciamento cotidiano.
"Cada artigo é um ponto de pauta para uma agenda política. São textos propositivos, em grande parte. E o que se quer é que esse livro de cultura seja um 'livro-voz', ouvido pelo partido [PT], pela direção", ressalta Ana Lúcia Silva Souza, pós-doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília (UnB) e organizadora do material.
"Não é a cultura do ponto de vista eurocêntrico. É pensar a cultura como uma forma de viver, que nos permitiu estar aqui, contar e fazer história cotidianamente. É uma cultura que coloca a gente em pé."
:: "40 ideias da Periferia": o que significa a pandemia sob o olhar periférico urbano? ::
A capa do livro é uma montagem com fotografias em preto e branco dos rostos de cada sujeito periférico responsável pela produção dos artigos.
"Esses rostos, em sua maioria negros e negras, espelham a periferia. E a periferia é esse espaço onde as pessoas negras não somente resistem, no sentido de empurrar as opressões", explica Souza. "Trabalho com esse conceito de reexistência, que é pensar essa invenção de práticas e de ações a partir da cultura, a partir do que a gente faz, aprende e ensina."
Desafios
O livro Cultura política nas periferias: estratégias de reexistência foi lançado pelo selo Reconexão Periferias, projeto que nasceu de uma resolução do 6º Congresso do PT, em 2017, logo após o golpe contra Dilma Rousseff.
A avaliação era de que as conexões entre as diversidades populares e a direção do partido precisavam ser aprimoradas e intensificadas. Ou seja, a participação de organizações da sociedade civil, movimentos sociais e várias formas de ativismos que florescem nas periferias do Brasil necessitavam de mais espaço e voz na formulação de programas e políticas públicas.
:: Negro Muro: projeto faz grafitagem de pessoas pretas em muros do Rio de Janeiro ::
O projeto foi dividido em três áreas: violência, trabalho e cultura. A obra organizada por Ana Lúcia Silva Souza é o resultado de acúmulos no âmbito desta última. O selo Reconexão Periferias pretende lançar, nos próximos meses, livros que reúnam estudos e relatos de experiências ligados às outras duas áreas de interesse.
Souza explica que os esforços para produção dos textos que integram o Cultura política nas periferias: estratégias de reexistência começaram no segundo semestre de 2019. Na época, alguns dos autores e autoras puderam se reunir presencialmente, em um encontro do projeto Reconexão Periferias em São Paulo.
A ideia original era que houvesse mais encontros presenciais, mas a pandemia de covid-19 foi um obstáculo.
:: Racismo: taxa de assassinatos cresce para negros e cai para o resto da população ::
Outra dificuldade, para muitos sujeitos e coletivos periféricos, foi expressar no papel seu fazer diário.
"A escrita, esse ato político, nem sempre foi franqueado para a gente. Registrar a nossa própria história, com a nossa marca, entonação, dicção. A gente deixa de ser os que 'são falados' e passamos a falar, a partir de um fazer. É como trocar o pneu com o carro andando. Então, muitas pessoas não conseguiram entregar seu artigo. A gente tinha convidado muito mais pessoas, mas em algum momento precisamos fechar", relata a organizadora.
Souza enfatiza que o livro é o ponto de partida, e não a conclusão de um projeto.
O objetivo a médio prazo é estimular a prática da escrita para que mais sujeitos tenham condições de compartilhar suas experiências de reexistência, rompendo pouco a pouco com o silêncio, legado da colonização e da escravidão e imposto cotidianamente nas periferias.
Edição: Daniel Lamir