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Por que a Colômbia se nega a conter o conflito armado na fronteira com a Venezuela?

Confronto com paramilitares já deixou 17 mortos e quase 4 mil desalojados; Iván Duque não aceita cooperar com Maduro

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Soldados colombianos caminham na cidade de Arauquita, no departamento de Arauca, em março deste ano - Daniel Fernándo Martinez Carvera/AFP

O confronto armado no estado de Apure, na fronteira entre a Colômbia e a Venezuaela, completa quase 20 dias, acumulando 17 mortos, 39 feridos e mais de 3 mil desalojados.

A Venezuela denuncia que teve seu território invadido por paramilitares vinculados ao narcotráfico e pede ajuda da ONU para mediar o diálogo com o Estado colombiano.

O presidente Iván Duque, que acusa o governo de Nicolás Maduro de gerar uma crise humanitária na fronteira, se nega a colaborar para colocar fim ao conflito.

Em fevereiro deste ano, a Colômbia havia anunciado a criação do Comando Especializado contra o Narcotráfico e Ameaças Transnacionais (Conat), com o deslocamento de 7 mil militares. Duque garante que o Conat deverá “acabar com qualquer forma transnacional de terrorismo”.

O grupo de elite faz parte do orçamento aprovado pelo Plano Colômbia Cresce, assinado entre Bogotá e Washington, em agosto do ano passado, que prevê um investimento de U$ 5 bilhões (cerca de R$ 25 bilhões) até 2023.

:: Leia também: As relações entre paramilitares colombianos e a oposição venezuelana ::

Além disso, no dia 24 de março, o Executivo assegurou que reforçaria a presença do exército no departamento fronteiriço de Arauca, com o envio de 1,3 mil soldados. A região, que abriga uma base militar dos Estados Unidos, recebeu quatro novas aeronaves C-17 há uma semana.

Na última segunda-feira (5), Duque se reuniu com o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, que se comprometeu em manter uma “estreita cooperação” para apoiar a manter a segurança e a paz na Colômbia. Os acordos em matéria de defesa, assinados entre os dois países, nos últimos 15 anos, movimentaram cerca de US$ 10 bilhões.

Apesar do operativo, o Estado colombiano não conseguiu neutralizar os grupos armados na fronteira.

Zona em disputa

De acordo com o presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Paz na Colômbia (Indepaz), Camilo González, o departamento de Arauca é disputado por vários grupos armados.

“Essa região é uma rota para tráfico de armas. A 10ª Frente [grupo armado] parece ser mais agressiva, inclusive com ataques diretos a unidades da Força Armada venezuelana. Estão muito comprometidos com o narcotráfico e são respaldados por uma dissidência da Farc, o grupo de Gentil Duarte, que não participou dos Acordos de Havana e permaneceu em armas. Também há uma presença antiga do Exército de Libertação Nacional (ELN)”, explica.

O chanceler venezuelano enviou uma carta ao presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas solicitando que o organismo investigasse a ação de grupos irregulares na fronteira colombiana e a aplicação do Acordo de Paz, assinado em 2016.

Segundo um levantamento do Indepaz, desde que o documento foi assinado, 971 líderes sociais e ex-guerrilheiros foram assassinados. Somente em 2021, aconteceram 26 massacres, com 43 defensores de direitos humanos mortos, além de 17 pessoas que assinaram o acordo de paz. 

A  última matança aconteceu na última terça-feira (6), no departamento de Cauca, deixando quatro vítimas. No dia 27 de março, uma explosão de um carro-bomba no mesmo estado, dessa vez na cidade de Corinto, deixou 43 pessoas feridas, incluindo 11 autoridades locais.

A maioria dos casos segue sem investigação.


Ivan Duque em coletiva de imprensa na cidade de Corinto, no departamento de Cauca, em março deste ano; local foi palco de ataque com carro-bomba, que deixou 43 pessoas feridas / Presidência da Colômbia/AFP

Insistência na política de militarização

Para a escritora colombo-venezuelana, María Fernanda Barreto, a classe política colombiana tem interesse em manter a guerra interna no país. O uribismo, que governou a nação nos últimos 20 anos, é beneficiado economicamente pelo conflito e pelas alianças com a Casa Branca.

"O imperialismo é o gerador de conflitos na nossa região e usa a Colômbia como sua base para isso. Lembremos que a Colômbia é sócio global da OTAN. Acredito que agora irão exportar esse modelo de militarização da Colômbia para a nossa América, com o recrudescimento das violações aos direitos humanos pela ação das polícias militares e o surgimento de vários grupos paramilitares", analisa Barreto.


Há uma base aérea militar dos Estados Unidos muito próxima à zona de conflito entre grupos irregulares colombianos e força armada venezuelana / Fernando Bertolo / Brasil de Fato

Venezuela reforça Defesa

A Colômbia é considerada o maior produtor de cocaína do mundo, com cerca de 171 mil hectares cultivados, que abastecem aproximadamente 70% do mercado mundial, de acordo com relatórios das Nações Unidas. Outros estudos independentes apontam que cerca de 2% do PIB colombiano, equivalente a US$ 19 bilhões (aproximadamente R$ 95 bilhões), seriam resultado do tráfico de drogas.

E o narcotráfico vem aliado à violência. A ONU aponta que 80% das vítimas de homicídios, em 2019, viviam nas zonas produtoras de coca.

"Colômbia é um narcoestado e isso ninguém pode negar. Eles têm carteis, clãs, estruturas de crime organizado", declarou o chanceler venezuelano Jorge Arreaza, durante uma coletiva de imprensa na última terça-feira (6).

Já o ministro de Defesa colombiano, Diego Molano, acusa a Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb) de “proteger o negócio do narcotráfico”. Afirma que o governo de Maduro é uma ditadura, que viola os direitos humanos dos venezuelanos e busca “limpar” a zona para ceder espaço a dissidências da FARC e ELN.

No entanto, o prefeito do município fronteiriço Paez, José María Romero, sustenta que não há colaboração do Estado venezuelano com os grupos armados.

“A 10ª Frente é um grupo que pretende avançar sobre o território venezuelano à força, instalando minas explosivas, ou seja, querem trazer a guerra colombiana à Venezuela. Querem estabelecer normas, enfrentar o Estado, isso lhe caracteriza como um grupo terrorista”, afirma.


Em março, a Venezuela deu início ao operativo Escudo Bolivariano 2021 para defender suas fronteiras / Prensa Fanb

Na região, sedes de instituições públicas venezuelanas foram atacadas, assim como o transporte público e o abastecimento de energia elétrica foram afetados pelas explosões.

A Fanb já desativou seis acampamentos de grupos irregulares, sete minas terrestres e identificou outras seis minas explosivas. O ministro de Defesa, o general Vladimir Padrino López, reiterou o pedido de ajuda à ONU para varrer o território e desativar os explosivos.

Venezuelanos que residem na zona fronteiriça contaram em entrevista à Telesur que adolescentes são enganados e recrutados à força pelos grupos irregulares colombianos. Também afirmam que algumas casas são destruídas pelos paramilitares e que meios de comunicação colombianos difundem notícias falsas, afirmando que as explosões foram causadas pelo exército venezuelano.

Um funcionário da Defensoria de Direitos Humanos da Colômbia confirmou, em entrevista, que os venezuelanos chegam aos abrigos porque tiveram suas casas queimadas por grupos irregulares, não por ataques da Fanb.

O prefeito José Romero denuncia ainda que os paramilitares colombianos andam “livremente” no município de Arauquita e controlam o transporte de colombianos e venezuelanos pelo rio Arauca.

"Esse setor uribista da classe política colombiana está buscando expandir o conflito social armado para a Venezuela, porque, com a fortaleza militar da Revolução Bolivariana, nem os EUA, nem as tropas regulares colombianas se atreveram a atuar. Eles continuam apostando nesse ataque irregular e isto que está acontecendo em Apure faz parte da mesma lógica", analisa María Fernanda Barreto. 

Vítimas do conflito

A violência provocou a migração forçada de 3,5 mil venezuelanos que residiam na região La Victoria para o município de Arauquita. Um operativo entre organismos multilaterais foi montado para a abertura de albergues.

"É uma população binacional, são colombianos com nacionalidade venezuelana, ou seja, têm duas identidades, por se tratar de uma migração antiga. Também há venezuelanos que trabalham na Colômbia. É uma fronteira muito porosa", pondera o presidente do Indepaz.

Autoridades colombianas chegaram a falar em 5 mil migrantes, quando a população de La Victoria não passa de 3.574 pessoas, segundo o último censo. O prefeito José María Romero afirma que 2 mil pessoas já voltaram à Venezuela e até o final de semana espera que todos retornem em barcos humanitários oferecidos pelo Executivo.

Romero também acusa a disseminação de notícias falsas para aumentar o medo da população em retornar aos seus lares.

“Tanto as forças armadas e autoridades nacionais, como os meios de comunicação colombianos tentam posicionar na opinião pública a ideia de que a Fanb estaria gerando violência dentro do nosso próprio território e não os invasores”, denuncia.


Segundo autoridades venezuelanas, cerca de 75% dos desalojados pelo conflito já puderam retornar aos seus lares, através de viagens em barcos humanitários / Migração Venezuela

Para o presidente do Indepaz, as acusações entre um Estado e outro, assim como o próprio conflito em si, possuem um fundo político mais complexo.

"Há um dispositivo geopolítico por detrás de todo esse conflito. A situação requer uma solução dialogada, requer uma mediação internacional, com Nações Unidas, Cruz Vermelha, igrejas. Ainda não houve resultado, mas esse é o caminho, porque a situação é insustentável”, conclui.

Para Barreto, também há um risco de se desatar uma guerra regional.

"Ao perder sua hegemonia desde a década 1990 e saber que esse processo é irreversível, a Casa Branca decidiu voltar atacar com toda força a nossa América. Por isso eles apostam no conflito permanente. Eu acredito que existe a possibilidade que se inicie uma guerra na região, mas creio que o mais provável é que iniciem pequenos conflitos irregulares", conclui a analista colombo-venezuelana María Fernanda Barreto.

Edição: Poliana Dallabrida