A determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) para que o Senado instale a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid deixou o governo Bolsonaro em apuros. Para especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, o caminho a ser percorrido pelo colegiado tende a embaraçar ainda mais a gestão, hoje afogada em críticas por conta da má condução da pandemia.
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O analista político Marcos Verlaine, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), projeta que o termômetro da futura CPI tende a subir especialmente se a assessoria técnica do colegiado trouxer à tona o levantamento da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) que analisou 3.049 normas federais produzidas pelo governo durante a pandemia.
Feito em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos e divulgado em janeiro deste ano, o estudo se refere a iniciativas de 2020 que sinalizaram o que os pesquisadores chamam de “estratégia institucional de propagação do vírus”.
O levantamento diz expressamente que tal articulação teria sido orquestrada “sob a liderança da Presidência da República” e correlaciona a conduta de Bolsonaro com o montante de óbitos por covid no país – hoje em mais de 348 mil.
São medidas provisórias, portarias, instruções normativas, resoluções, leis, decretos do governo e ainda declarações públicas de Bolsonaro que, juntos, concorreram para a piora da crise sanitária.
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“Acho provável que eles utilizem isso na CPI. Os elementos comprobatórios de que o Bolsonaro sabotou o combate à pandemia estão mais do que evidentes. Agora só precisava organizar essas informações no âmbito do colegiado. Tem tudo pra render”, comenta Verlaine, ao mencionar os riscos políticos envolvidos nesse tipo de apuração.
Via de regra, uma Comissão Parlamentar de Inquérito investiga um fato determinado e durante um prazo previamente estabelecido. O colegiado tem poder para convocar depoimentos, ouvir testemunhas, levantar documentos sigilosos e definir diligências para as apurações, entre outras ações.
Os trabalhos costumam ser encerrados com um relatório que traz conclusões sobre a investigação e pode incluir também apresentação de novos projetos de lei, recomendações, etc. É de praxe que o colegiado, entre outras coisas, encaminhe o documento ao Ministério Público para pedir que os infratores em questão sejam responsabilizados nos âmbitos civil e criminal.
“Isso vai jogar gasolina na fogueira, não tenho dúvida. O governo está lascado com essa comissão. Acho que essa CPI vai ser uma avant-première da eleição 2022”, projeta o analisa do Diap.
O colegiado, no entanto, não deve ficar livre do tradicional jogo de pressão política que paira sobre as diferentes comissões. A tendência é que o governo, inclusive pela maioria numérica que tem no Congresso por conta do apoio do centrão, tente dominar a CPI, controlando os movimentos do grupo. Cargos estratégicos, de todo modo, devem ficar na mão de opositores, pelos cálculos de Verlaine.
“A práxis, no Senado, é de que o proponente preside. Se isso prevalecer, e eu acredito que sim, quem vai ser o presidente da CPI é o Randolfe Rodrigues [líder da oposição no Senado], e dificilmente vai ser alguém do governo o relator”, analisa.
Randolfe articulou, em fevereiro, a lista de assinaturas de apoio à criação da CPI, obtendo um total de 30 signatários, três a mais que o mínimo exigido pelo regimento.
De lá pra cá, ele e outros colegas vinham cobrando ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o despacho de criação da comissão. Mas a pauta estacionou na gaveta do senador mineiro, que se elegeu para o cargo com o patrocínio da tropa do Planalto e tem se mostrado fiel a Bolsonaro no jogo legislativo.
Custo midiático
A cientista política Monalisa Soares, do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia da Universidade Federal do Ceará (Lepem-UFC), aponta que a gestão Bolsonaro deve ficar mais ou menos comprometida com a CPI a depender do nível de exposição que a comissão terá. Esse elemento pode potencializar a ressonância dos trabalhos.
“Haverá um certo espaço para expor de modo mais sistemático e visível a crítica que as oposições têm à forma de atuação do governo na pandemia. Teremos isso mais ao longo do processo, porque é natural que a CPI passe a ser coberta pelos jornais e tenha mais visibilidade com o tempo.”
Como efeito, a expectativa é de que se amplie o desgaste da gestão e que, consequentemente, os partidos do centrão aumentem o preço que cobram pelo apoio ao governo. Em geral, as barganhas se dão em termos de liberação de emendas e nomeação de aliados nos ministérios ou em empresas e agências a eles vinculadas.
“Eles sabem, obviamente, o prejuízo que a CPI pode trazer porque o presidente vem num processo de desgaste, com agudização da pandemia, recorde de mortes, desaprovações acima de 50% em todas as pesquisas. Tudo isso está sendo sinalizado e num movimento cada vez mais próximo do seu processo eleitoral, que é o ano que vem. O centrão está atento a esses movimentos e vai se posicionar de maneira a obter ganhos com isso”, analisa Monalisa.
Assinaturas
Em manifestação feita na sexta (10) junto à imprensa, Randolfe não chegou a mencionar eventuais disputas para o cargo de presidente da CPI.
Antes disso, o parlamentar pressionou para que nenhum senador retire o nome da lista de apoios da comissão, o que poderia comprometer o quórum necessário à efetivação do colegiado: “A esta altura, se algum colega retirar assinatura da CPI, escreverá seu nome no painel da infâmia e da história como cúmplice de genocídio”.
Randolfe também rebateu o argumento que vem sendo entoado por Pacheco no sentido de que a instalação de uma CPI neste momento seria contraproducente porque a Casa opera em esquema de votações virtuais.
“As razões para instalação estão dadas. O Brasil se omitiu na aquisição de vacinas e, ao mesmo tempo, incentivou aglomerações, tornando-se epicentro global da pandemia. O funcionamento da comissão é perfeitamente possível: sessões do Senado funcionam de forma semipresencial, portanto, da mesma forma pode funcionar a CPI”, disse o líder da oposição.
Edição: Daniel Lamir