Todo mundo, em algum lugar, canta uma música dele, muitas vezes sem saber que por trás daquela canção está a inspiração de Paulo Cesar Pinheiro. Assim resume a diretora Andrea Prates sobre a importância do documentário Paulo Cesar Pinheiro Letra e Alma, que assina ao lado de Cleisson Vidal com lançamento neste domingo às 21h no festival É Tudo Verdade.
O filme, de fato, é uma obra necessária sobre a mais fértil cabeças da história da música popular brasileira. Isso porque traz uma narrativa ampla e fiel, contada e cantada pelo próprio personagem e por dezenas de nomes da MPB que deram voz à inspiração de Paulo Cesar. São cinco gerações de parcerias, das feitas com Pixinguinha, nascido no final do século 19, à safra de jovens compositores do século 21.
O filme revela um profundo orgulho de Paulo Cesar Pinheiro para com seu acervo, de mais de 2 mil composições, sendo mais da metade dele gravado, pelas mais diferentes vozes do cancioneiro nacional. O documentário começa ao som de Viagem (Oh, tristeza me desculpe/ Estou de malas prontas / Hoje a poesia veio ao meu encontro / Já raiou o dia, vamos viajar).
E termina com um retrato moderno do que se transformou o Rio de Janeiro, conduzido por ele, a mulher Luciana Rabello, e os filhos Ana Rabello Pinheiro e Julião Rabello Pinheiro.
::O lamento (contido) de Paulo César Pinheiro::
A primeira parceria, Viagem, com João de Aquino, foi escrita aos 14 anos, pouco tempo depois de o poeta começar a esparramar num bloco de papel o encantamento com a primeira paixão, descoberta aos 13. “Lembro exatamente como foi esse dia, uma paixão que me levou para um mundo encantado que eu não conhecia”, conta Paulo Cesar Pinheiro. A sensação interior explosiva só se aquietou quando começou a escrever. “Certa vez, na casa de um tio, catei um bloco e um lápis e desandei a escrever umas coisas. Voltei das férias escolares cheio de versos.” E nunca mais parou.
Apresentado a Baden Powell por João de Aquino, Paulo Cesar escreveu para o violonista a letra de Lapinha aos 16 anos. “Baden se encantou comigo. Me levou a todos os lugares. Conheci a noite carioca e todos os compositores com Baden. Era tão jovem que nem podia entrar em lugar nenhum. Mas ia para as rodas nas casas das pessoas. Tinha três rodas por semana: uma na cada do Tom Jobim, outra na casa do Marcos Valle, que morava em frente ao prédio do Tom, e outra na casa da Olívia Hime”, lembra.
Conduzida por Elis Regina em alucinado ritmo de samba-enredo, Lapinha venceu a 1ª Bienal do Samba de 1968, da TV Record. Somente depois, em 1969, ganhou duas gravações, por Baden e pela cantora Marcia. Tinha ali início uma carreira recordista de centenas de grandes sucessos que passariam a compor a memória de todo amante da música do Brasil.
Nas ruas do subúrbio
Paulo Cesar Pinheiro nasceu em Ramos, no subúrbio do Rio de Janeiro. E observa que hoje jamais conseguiria revistar o lugar onde nasceu, posto que está em algum ponto engolido pelo que virou o Complexo da Maré. Mudou-se para o Morro do Tuiuti, lugar que lhe deu “régua e compasso” e onde aprendeu todo tipo de malandragem. “Ali me formei, a vida nas ruas do subúrbio que é a mais rica que se pode ter”, diz. Ali se formou o poeta. “Meus pensamentos não mudaram até hoje. Confio nessa energia circular cósmica que rege tudo. Confio e deixo me levar.” Mas foi na Mangueira que descobriu seu DNA do samba.
O poeta morou com Baden durante um ano. “A gente mal parava pra fazer comida, mas não falhava a cachaça. E saía música em cima de música, umas 50 nesse período”, relata de seu sofá, enquanto o espectador desfruta uma primorosa Eliseth Cardoso, cantando Refém da Solidão, dele e Baden. Em meio a uma temporada de crises amorosas do violonista, passaram a compor diversos sambas “para espicaçar as desilusões”, que tem como ícone Vou Deitar e Rolar (Qua-quará-qua-quá), eternizada por Elis Regina.
Não venha querer se consolar
Que agora não dá mais pé
Nem nunca mais vai dar
Também quem mandou se levantar
Quem levantou pra sair
Perde o lugar
E agora, cadê teu novo amor
Cadê que ele nunca funcionou
Cadê que ele nada resolveu
Quaquaraquaquá, quem riu
Quaquaraquaquá, fui eu
Depois de João de Aquino e Baden Powell, abriu-se o universo de parcerias. Pixinguinha, Tom Jobim, Edu Lobo, Francis Hime, João de Aquino, Dori Caymmi, Ivan Lins, Mauro Duarte, João Nogueira, Guinga, Toquinho, Lenine, Eduardo Gudin, Maurício Tapajós, Sueli Costa, só para citar uma pequena fatia desse compositor feito de insipiração e também de boa sorte: “Estive nos lugares certos, nas horas certas, com as pessoas certas”, define.
Do sofá de Paulo César Pinheiro brotam uma infinidade de histórias pelas andanças da música brasileira. Uma delas de quando Hermínio Bello de Carvalho – compositor, poeta, produtor e enciclopédia da cultura nacional – o levou para conhecer Pixinguinha. “Um dia o Herminio me ligou dizendo que queria me apresentar o ‘velho’.” Pixinguinha, havia composto um choro há um tempo e queria uma letra. E a única pessoa que podia por a letra em Ingênuo é ele, decretou Hermínio.
Eu fui ingênuo quando acreditei no amor
Mas, pelo menos jamais me entreguei à dor…
Chorei o meu choro primeiro
Eu chorei por inteiro pra não mais chorar
E o meu coração permaneceu sereno
Expulsando o veneno pelo meu olhar….
Depois dessa, receberia fitas cassete com mais de 50 músicas para pôr letra. E mais do que uma escola brasileira do choro, Pixinguinha era “sábio”, como define Paulo Cesar, ao repetir no filme um “causo” que já havia relatara no livro História de Minhas Canções (Leya, 2010). “Certa vez um cara chegou ao Pixinguinha preocupado:
– Você está bebendo demais…
– Meu filho, a bebida só faz mal para quem não tem caráter – responde o sábio, numa mesa do Bar do Gouveia, na Praça Sete de Setembro.
Paulo Cesar destaca também a produtiva parceria como paulista Eduardo Gudin, com quem viveu peripécias pitorescas. Como a de um certo dia em São Paulo, quando foi ao escritório da TV Tupi para receber a premiação de um festival – pago em dinheiro vivo embrulhado num pacote. Em seguiu encontrou Eduardo Gudin num boteco de esquina e passaram a virar uísque atrás de uísque.
“E o pacote ali, no balcão… Depois Fomos pra casa de alguém e ficamos até as 4h da manhã, e o pacote ali na sala. Peguei um táxi para o hotel e quando dei por mim, cadê o pacote. Esqueci no táxi.” Ele conta que chegou a publicar anúncio oferecendo recompensa pelo “pacote”, que nunca mais viu. E dali nasceria Lá se vão meus anéis. Nesse momento, o filme serve mais uma dose de nostalgia ao exibir Os Originais do Samba – saborosa oportunidade de rever o saudoso Muçum e seus comparsas entoando o samba Paulo Cesar Pinheiro e Gudin.
O importante é que a nossa emoção sobreviva
A dupla, aliás, assinaria um dos espetáculos clássicos dos anos de chumbo e de resistência cultural, O Importante é Que a Nossa Emoção Sobreviva, de 1975. “As primeiras filas eram todas ocupadas por agentes da repressão, que ia todos os dias, já que não tinha um texto, eu falava de improviso, e iam ver sobre o que eu estava falando”, recorda.
Antes, em 1973, quando fez Pesadelo com Maurício Tapajós, Paulo Cesar Pinheiro revelou uma vontade de parar com esse negócio de compor e dar cara mais literal à resistência. A canção foi apresentada pelo MPB-4 em 13 dezembro de 1973 no espetáculo Banquete dos Mendigos, para marcar os cinco anos do AI-5. E até hoje é entoada como um hino de esperança e resistência.
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí…
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco
Vamos por aí eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós, olha aí…
O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo, horizonte
Abraça o dia de amanhã
Olha aí…
Não vai passar
“Não vai passar (na censura)”, apostava Tapajós. Mas Paulo Cesar, então trabalhando como produtor na gravadora EMI Odeon, lembrou de sua “formação” dos tempos de Tuiuti não foi em vão. “Enfiei a música no meio de uma pasta que tinha as músicas de um disco do Agnaldo Timóteo e que um rapaz ia levar para a censura avaliar. Passou. Veio tudo liberado, sem ressalvas”, ri. Mas as emissoras de rádio, por pavor ou cumplicidade com o regime, tão logo começaram a tocar, passaram elas mesmas a exercer a censura. “Mas a liberação da censura tá aqui!”, cobrava. “Mas não vou tocar”, ouvia como resposta
Com Tapajós fez ainda Tô Voltando, popularizada por Simone. Foi uma música que o Tapajós começou a fez por saudade de casa, depois de passar um mês viajando por um projeto do Sesc. “E no primeiro avião que trazia uma leva de exilados anistiados (1979) todas as pessoas vinham cantando. Você faz a música inspirado num fato, e o povo faz a música virar outra coisa. Virou hino da anistia (ao lado de O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco), o que me comoveu de ir à lágrimas.”
Hoje sei o perigo que corri
A formação literária de Paulo Cesar foi “solo”, ele enfatiza. “Ninguém nunca me mandou ler ninguém. Com 16 anos já tinha decodificado toda obra de João Guimarães Rosa. Por ele fiz Sagarana, com João de Aquino e Matita Perê, com Tom Jobim” – espectador mais uma oportunidade de desfrutar a história, cantada por Zezé Motta.
Sagarana, inclusive, protagoniza ou episódio de certa forma cômico, envolvendo a censura. “A censura vetou Sagarana. Eu não entendia por quê. Fui até o censor, um condutor de bonde, se não me engano. Levei o livro e mostrei. ‘Olha a música foi feita para esse escritor, João Guimarães Rosa, membro da Academia Brasileira de Letras, nada a ver com política.’ O cara não entendia nada, nem do livro, nem a letra. ‘A gente vai manter o veto!’ ‘Por quê?’ ‘Isso está parecendo linguagem de código’”, descreve Paulo Cesar Pinheiro. “Hoje sei o perigo que corri, mas na época não sabia”
O filme Paulo Cesar Pinheiro – Letra e Alma dá a algumas das mais saborosas histórias da música do Brasil a credibilidade da voz forte e contundente do poeta. Como quando conheceu Mauro Duarte, com que fez O Canto das Três Raças, eternizada por Clara Nunes. Com Clara foi casado por oito anos. “Aprendi a fazer samba na Mangueira e fui conhecer a Clara num festival da Portela. Namoramos, fomos casados por oito anos, até a morte dela em 1983.”
O sagrado e o profano
E apesar de ter descoberto seu DNA de samba descoberto na Mangueira, não teve como negar o pedido de Clara de fazer um samba para a Portela. Certa vez, ele conta, ao na escola uma aquela imagem de Nossa Senhora Aparecida, com manto azul, veio a cabeça a ideia de unir “o profano e o sagrado, falar da procissão do samba na avenida, e do manto azul da Padroeira do Brasil que vai se arrastando… (E povo rua cantando/ É feito uma reza, um ritual/ É a procissão do samba abençoando’ A festa do Divino, o Carnaval)
Não podia ficar de fora o registro das grandes parcerias com João Nogueira, o amigo de muitos sambas e andanças pela boêmia carioca. Pois foi com Nogueira que compôs a trilogia em que explica a relação entre o compositor, o cantor e a magia e a sua missão de criar: Súplica, Poder da Criação e Missão.
A “missão” de Paulo Cesar Pinheiro seguiu em frente depois de Clara, depois de João e depois de tudo que acumulou nesses 72 anos de vida que está por completar no próximo 28 de abril. O que mostra o primoroso trabalho de edição e montagem conduzido por Lea Van Steen não cabe nestas linhas. Quem ama a música, a natureza e a história do Brasil não perdeu por esperar este filme que vinha sendo gestado desde 2014. É tudo verdade. O documentário tem lançamento mundial pelo festival neste domingo (11), às 21h, e será reprisado nesta segunda (12), às 15h, pela plataforma Looke.