Na pandemia

VÍDEO: carros funerários não são higienizados após levar mortos por covid em SP

Imagens mostram caixões sendo retirados sem limpeza; terceirizados reclamam que não receberam treinamento da Prefeitura

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Para sindicalista, terceirização compromete o trabalho de higienização na remoção dos corpos com Covid-19 - Foto: Reprodução

No último dia 30 de março, o município de São Paulo bateu um recorde triste para a sua história. Nunca, em seus 467 anos, a capital paulista enterrou tantas pessoas em um único dia. Foram 420 sepultamentos espalhados pelos 40 cemitérios da cidade, 22 públicos e 18 privados, além do crematório da Vila Alpina.

Em março de 2020, o primeiro mês da pandemia no mundo, 6.056 pessoas foram enterradas, ou cremadas, em São Paulo, de acordo com o boletim informativo do Serviço Funerário. No mesmo período de 2021, foram 9.771 enterros, ou cremações, um aumento de 61%.

Para atender a demanda de sepultamentos da capital paulista, são 45 carros funerários, responsáveis pelo deslocamento dos corpos entre os hospitais e cemitérios. Trinta, desses automóveis, são alugados, sem licitação, da FVB Locadora de Veículos, que terceiriza o serviço para a Prefeitura de São Paulo. Vinte foram contratados em abril de 2020 e outros dez, em fevereiro de 2021.

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Porém, com a alta no número de sepultamentos na capital, que saltou de 5.964 em fevereiro para 9.771 em março, a Prefeitura precisou contratar, também sem licitação, outros 50 veículos, da empresa Era Técnica Engenharia Construções e Serviços, de forma emergencial para o traslado nos cemitérios. Nessa leva, vans escolares começaram a transportar os corpos.

Motoristas terceirizados informaram ao Brasil de Fato que não receberam treinamento para higienização dos veículos e nem Surface, produto químico utilizado para a limpeza dos carros. Além disso, tem faltado Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para os trabalhadores.

Vlamir Lima, diretor do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de São Paulo (Sindsep-SP), confirmou a informação e criticou a Prefeitura pela falta de treinamento dos terceirizados. Segundo o sindicalista, “isso precariza o serviço e o atendimento à população.”

“No nosso entendimento, esse tipo de contratação (terceirizada) não é adequado para garantir a higienização sanitária na remoção dos (corpos) com Covid. Nem sempre, todas as pessoas que estão nesse processo, estão com equipamento correto, ou mesmo tempo para esse processo. Ou mesmo a higienização das vans”, lamenta Lima.

O Brasil de Fato recebeu um vídeo que mostra um carregamento de caixões, que teria sido gravado, de acordo com motoristas terceirizados, em uma garagem da FVB na Vila Guilherme, zona norte de São Paulo. Nas imagens, borradas para que os trabalhadores não sejam identificados, apenas uma pessoa utiliza máscara.

“Essas vans, elas vêm, retiram material, vão até os hospitais, recolhem o corpo e levam até os cemitérios. Isso o dia inteiro, sem higienização nenhuma”, afirma o motorista que gravou o vídeo, enquanto caixões são colocados dentro do veículo. Na mesa, nenhum produto de limpeza, ou mesmo álcool em gel.

Condições de trabalho

Em março de 2020, 257 sepultadores realizavam, em média, 30 enterros por dia, em todo o sistema público de cemitérios de São Paulo. Com a pandemia, 60% foram afastados, por pertencerem ao grupo de risco. Hoje, são 398 coveiros, sendo 173 servidores concursados e 225 trabalhadores terceirizados, contratados pela Prefeitura de São Paulo, um aumento de 55% no efetivo.

“Olha, 30 enterros era um dia cheio. Hoje, fazemos uns 80 em um dia e tem gente aqui que diz ter feito 90. É muito cansativo, estou cansado demais”, conta um sepultador, que pediu para não ser identificado, que trabalha no Complexo da Vila Formosa, o maior cemitério da América Latina.

De acordo o sepultador, na semana entre os dias 28 de março e 3 de abril deste ano, o cemitério chegou a ficar sem água. “Estranho, né? Todo mundo falando que tem que se proteger, higienizar tudo, e aqui não tinha o básico. Ninguém se importa com a gente”, desabafou o servidor.

No Concurso Público 01/2016, realizado pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo, realizado em abril de 2016, 100 sepultadores foram aprovados, de acordo com o Sindsep-SP. No entanto, apesar do aumento na carga de trabalho, a Prefeitura não contratou os trabalhadores aprovados no edital.

Para ampliar a capacidade de atendimento durante a pandemia, alguns cemitérios públicos, incluso o da Vila Formosa, ampliaram o horário de sepultamentos, que ocorria até 18h, e agora segue até às 20h. Lima explica que a chegada dos terceirizados, os servidores efetivos gastam parte do tempo da jornada explicando o método de trabalho.

“A pressão é muito grande. Os enterros tem mais que duplicado o serviço, isso coloca uma pressão imensa nos trabalhadores, para dar conta desse serviço. É uma situação difícil, porque a substituição de trabalhadores tem sido por terceirizados e isso tem prejudicado. Os terceirizados são temporários e isso é muito difícil para eles, pois se eles adoecem, eles não estão cobertos”, encerra o sindicalista.

Imagens do Complexo da Vila Formosa, obtidas pelo Brasil de Fato, mostram dezenas de caixões armazenados durante a madrugada, esperando os trabalhadores do turno da manhã chegarem, para que sejam sepultados.


De acordo com o epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (US), o armazenamento dos corpos, mesmo que fora de refrigeradores, não representam risco de infecção por Covid-19. “O problema é que se você mantiver o corpo fora da geladeira, é que ele vai deteriorar e deixará um odor horrível no ambiente. Mas não há possibilidade, caso o caixão esteja lacrado, de que haja contaminação.”

Outro lado

Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que “estabeleceu, no início da pandemia, um Plano de Contingência Funerária, com medidas e ajustes, de acordo com a variação do número de enterros diários, para manter uma logística de funcionamento do serviço que garanta a dignidade das vítimas de Covid 19 e diminua o sofrimento das famílias.”

O governo municipal afirmou, também, que a higienização dos veículos “é feita no início e no final do dia, assim que finalizado os dois turnos de trabalho” e que “Os sepultadores utilizam equipamentos de proteção individual (EPI) como máscaras, luvas e uma roupa apropriada para manejo dos corpos.”

No entanto, a Prefeitura de São Paulo não comentou a falta de água no Complexo da Vila Formosa e nem explicou porque a decisão de contratar terceirizados, se há sepultadores aprovados em concurso público convocado pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo.

O telefone disponível no site da FVB Locadora de Veículos não foi atendido em nenhum momento desde o início da produção da matéria.

Edição: Vinícius Segalla