No dia 17 de abril de 2016, a Câmara dos Deputados votou e aprovou a abertura do processo de impeachment contra a então presidenta da República, Dilma Rousseff. No dia 12 de maio do mesmo ano, o Senado Federal viria a ratificar a decisão.
Cinco anos após o fato político, o Brasil de Fato publica uma série de reportagens acerca do tema, abordando o contexto da época e seus desdobramentos até os dias de hoje. Veja, na coluna à direita, as reportagens já publicadas.
As duas votações de 2016 foram acompanhadas por milhares de pessoas de todo o país que se concentraram nos arredores do Congresso Nacional, em Brasília. Nas duas votações, essa multidão acampou por dois dias em gramados da capital federal, dividida em dois grupos: um que vestia vermelho e outro que usava verde e amarelo.
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O cineasta e jornalista Gustavo Aranda, dos Jornalistas Livres, também estava lá, com mais de uma dezena de colegas do mesmo coletivo. Enquanto os jornalistas faziam a cobertura do acontecimento, Aranda ia de um acampamento a outro, filmando o que via e conversando com quem tivesse algo a dizer. Captou mais de nove horas de imagens, entrevistas, discursos, orações, passeatas e protestos.
Depois, me chamou para, junto com ele, transformar aquilo em um documentário de pouco mais de uma hora. Fizemos isso, terminamos em 2017. Se chama "Tchau, Querida".
Ainda quando terminamos, não percebemos. Assistimos e assistimos de novo e depois de novo a todo aquele material, como se faz quando se edita um filme. Ainda assim, não percebemos. Mas também ninguém tinha percebido.
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Com o tempo, foi se tornando claro o que hoje é cristalino: o gérmen do bolsonarismo estava ali. Não estava escondido, não se travestia de qualquer outra coisa, estava ali para quem pudesse ver. Não sei bem o motivo, mas não pudemos ver.
Na noite de 15 de abril, uma sexta-feira, os manifestantes favoráveis e contrários ao impeachment começavam a chegar em Brasília, que teve seu primeiro dia de atos políticos. No lado verde e amarelo, em cima do carro de som, estava Allan dos Santos, que ainda não era o blogueiro bolsonarista que mora nos Estados Unidos.
Ele abraçou companheiros, fez discurso, gritou que valeu a pena todo o esforço dos últimos meses. Depois, desceu do carro de som, encontrou um casal vestido com camisetas de Olavo de Carvalho, a foto do escritor na frente, um símbolo anticomunista atrás. Allan dos Santos, então, saca o celular, o telefone em uma mão e o cigarro em outra, e ligou para o filósofo, que morava e mora até hoje nos Estados Unidos. O casal mandou "um abraço, Olavããão". Está no vídeo abaixo, já no trecho certo acima narrado.
A câmera de Aranda corre pela manifestação patriótica, antipetista e contra a corrupção. Uma senhora explica que é preciso tirar Dilma Rousseff da presidência. É preciso, porque só assim seria possível prender o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E, se não se prendesse o ex-presidente Lula, ele iria se candidatar novamente em 2018, e iria vencer, e então tudo estaria terminado, seria o comunismo implantado no Brasil.
Um outro grupo de senhoras, usando camisetas e adereços verde e amarelos, conta que tudo aquilo – o impeachment de Dilma – só estava sendo possível por causa do então juiz Sergio Moro. "Sergio Moro, você mora aqui, ó", diz uma das senhoras, por trás de uma máscara de Carnaval, apontando para o próprio coração.
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A câmera segue, em meio às cores da bandeira do Brasil, gente pedindo Justiça e muitas camisetas à venda. Nas roupas, além do símbolo da Confederação Brasileira de Futebol, o rosto estampado de três e apenas três personalidades da cena política brasileira: Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro e Sergio Moro. O trecho segue abaixo, no ponto certo.
Ao longo do dia 16 de abril, cada acampamento teve a sua programação. No lado vermelho, uma série de políticos de esquerda visitou os manifestantes. Foi um dia e uma tarde de discursos, atos políticos, bandeiras de partidos e sindicatos, roda de samba, churrasquinho, almoço distribuído gratuitamente pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e um discurso inflamado de Luiz Inácio Lula da Silva.
Do lado verde e amarelo, nenhum ato político, nenhum discurso, apenas a confraternização entre os manifestantes em torno de uma praça ocupada por food trucks e o lançamento oficial de um automóvel de uma grande montadora, que contou com DJ, venda de pixulecos (a R$ 20, como disse mais de uma vez a vendedora ao cineasta) e bandeiras do Brasil.
A um dos manifestantes, trajando uma camiseta de Jair Bolsonaro e encenando para a câmera, entre risos, uma facada em um outro que vestia uma fantasia de Lula, o cineasta pergunta se, com a devida oportunidade, ele mataria mesmo o ex-presidente, de verdade. Ele pensa um pouco e responde: "Mataria". Pensa mais, volta atrás, diz que Lula deve ir pra prisão. "A morte, para ele, é muito pouco". Pode se ver abaixo, o vídeo já está no trecho narrado.
Na noite do dia 16, a que antecedia a votação do impeachment, do lado vermelho, houve um ato político. No carro de som, entre outros, uma dirigente da União Nacional dos Estudantes (UNE) discursou. Depois, foi a vez do senador Humberto Costa (PT-PE). Falaram de desigualdade, da luta pela redução da pobreza e da esperança de que "não vai ter golpe".
No mesmo momento, do lado verde e amarelo, acontecia uma vigília e um ato ecumênico, os manifestantes portando velas. Em cima do carro de som, um senhor carregava uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. No microfone, um pastor rezava um Pai Nosso e pedia que Deus iluminasse os deputados no dia seguinte, para que eles pudessem livrar o "país da corrupção".
Havia mais pessoas do lado vermelho do que do lado verde e amarelo naquela noite. Ainda assim, antes de rezar, disse o pastor: "Hoje, no Brasil, não existem nós e eles, esses e aqueles. Hoje, só existe nós! 200 milhões de brasileiros, que esperam dias melhores!". Está abaixo.
No dia seguinte, os manifestantes vermelhos foram em passeata pelas ruas de Brasília até a área a eles reservada em frente ao Congresso. Faixas de partidos, estrelas do PT, bandeiras do PSOL, grupos feministas, indígenas, sindicalistas, sem terra.
Do lado verde e amarelo, fardas militares, camisetas de Bolsonaro, da CBF, de Olavo de Carvalho e de Sergio Moro, e o Hino Nacional, entoado repetidamente. Por alguns, carregados de emoção, aos gritos, com o braço e a mão direitos estendidos, Salve o Brasil! Está no vídeo abaixo.
Durante a votação na Câmara, primeiro, comemoração e torcida dos dois lados. A partir de um dado momento, choro de um lado e festa do outro. Dentro do prédio do Congresso, aquilo que se viu, votos pela família, por minha família, por meus filhos, pela minha esposa, pela democracia, pela liberdade, pela Operação Lava Jato, contra a corrupção, o ensino de sexo a crianças nas escolas, a quadrilha lulopetista, o comunismo, a venezuelização do país.
Um deputado do rio de Janeiro, quando surgiu no telão, com um de seus filhos logo atrás, preparando-se para votar, um voto em que viria a homenagear a memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, "o terror de Dilma Rousseff", causou uma explosão de êxtase no lado verde e amarelo. Comemoração e gritos como em final de Copa do Mundo. Pode-se imaginar qual deputado era esse?
Hoje, quando passo pela mente todas essas imagens, essas nove horas a que assisti tantas vezes, me pergunto como não vi o que já estava acontecendo ali, onde aquilo deveria chegar e chegou.
O impeachment, a Operação Lava Jato, Sergio Moro, Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro, a antipolítica. Tudo já estava ali, em abril de 2016, junto, fundido, coeso, integrado, a mover as engrenagens do golpe, e depois a prisão de Lula, coroando o caminho trilhado com a eleição do atual presidente da República.
Que a História e os historiadores tenham mais capacidade de enxergar o óbvio do que eu tive.
Edição: Poliana Dallabrida