Dilma Rousseff

Como impeachment gerou desarranjo institucional e escancarou debilidade democrática

Cinco anos após a deposição, historiadores analisam processo como consequência e não causa de fragilidade da democracia

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Dilma Rousseff e as ex-companheiras de prisão durante sua segunda posse na Presidência, em 2015
Dilma Rousseff e as ex-companheiras de prisão durante sua segunda posse na Presidência, em 2015 - Divulgação

As interpretações históricas, sociais e políticas sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ocorrido em 2016, ainda estão em fase de elaboração crítica. Deverá levar algumas décadas até que se consolidem as versões dominantes sobre esse processo.

Mesmo assim, historiadores ouvidos pelo Brasil de Fato apontam que o afastamento traumático do Partido dos Trabalhadores (PT) da Presidência da República resultou em um desarranjo político-institucional que, em essência, rebaixou ainda mais a já antes frágil democracia brasileira.

::O golpe de 2016: a porta para o desastre, por Dilma Rousseff::    

"Na prática, nos últimos anos, o desarranjo institucional e desconfiança sobre a classe política só aumentou. O impeachment, que veio pra resolver o desarranjo institucional, segundo o argumento, acabou o aprofundando. Hoje, a gente está num cenário de instituições completamente disfuncionais, onde só é aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia porque um ministro do Supremo [Tribunal Federal] manda, o que é uma coisa impressionante", afirma o historiador Murilo Cleto, um dos organizadores do livro "Por que gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil", lançado ainda em 2016, no calor dos acontecimentos, pela editora Boitempo.

A obra reúne textos de 30 pesquisadores, políticos, professores, ativistas e representantes de movimentos sociais, incluindo nomes como Guilherme Boulos, Ciro Gomes, Michael Lowy e Djamila Ribeiro.

"O impeachment foi fundamental para aprofundar o desarranjo institucional porque a classe política deixou muito claro que valia qualquer coisa para que os interesses dela prevalecessem no jogo político", explica Cleto, em entrevista ao Brasil de Fato para esta reportagem, que compõe uma série que vem sendo publicada pelo veículo desde o início desta semana, em que se chega a cinco anos do impeachment da ex-presidenta. Pode-se ver a lista completa na coluna à direita. 

::Cinco anos após impeachment, direitos trabalhistas ruíram e o emprego não veio::

O historiador revê com olhos de agora o uso do termo golpe para se referir ao impeachment de Dilma. "Eu digo que não foi golpe. A gente sabe que, no interior da democracia, existem mecanismos que, infelizmente, permitem que injustiças sejam cometidas contra determinados líderes políticos", diz. "O que aconteceu foi uma chicana da classe política pra tentar sobreviver em meio àquele turbilhão, tentando fazer a Dilma de boi de piranha, e escapar da cadeia", acrescenta.

Para Osvaldo Coggiola, professor titular de História Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP), embora o processo de impeachment possa não se enquadrar na categoria clássica de golpe de Estado militar, a definição de golpe na contemporaneidade pode ser mais abrangente.

No caso do afastamento de Dilma, segundo ele, é possível apontar uma atuação das Forças Armadas na sua legitimação. "Houve uma interferência direta do poder militar no desfecho desse golpe, tanto no impeachment da Dilma quanto na prisão de Lula", explica, em referência à pressão que o então comandante do Exército, general Villas Bôas, chegou a fazer para que o STF não impedisse prisão do ex-presidente, além da forma como os militares agiram para facilitar o decurso do afastamento de Dilma.

Abaixo, um tuíte da oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com fotos de uma manifestação pelo impeachment na avenida Paulista em 2015. 

 

 

O especialista cita também o processo de destituição do presidente Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012, como antecedente e prelúdio do que ocorreu no Brasil. Outros países sulamericanos viveram processos similares, como a Bolívia e o ex-presidente Evo Morales, em 2019.   

Como objetivo imediato, diz Coggiola, os organizadores do afastamento de Dilma queriam tirar o PT da cabeça da coalizão governante e criar outro tipo de coalizão política, além de impedir que a esquerda voltasse ao poder. Do ponto de vista da dimensão histórica desse processo, e dos interesses de classes envolvidos, o docente explica ainda que é preciso ir além da ideia de ruptura com o chamado presidencialismo de coalizão, que marcou o arranjo político e institucional das últimas décadas:    

O objetivo social, e diríamos histórico, vai muito além disso. O objetivo era substituir 15 anos de governo de conciliação de classes por uma agenda política neoliberal no centro da preocupação política.

"Substituir esse governo de conciliação de classes por um governo de ataque direto às conquistas sociais dos trabalhadores, do povo em geral. Não somente aquelas que tinham sido obtidas durante os governos Lula, mas todas aquelas acumuladas no Brasil desde que foi legislada uma série de conquistas, como os direitos trabalhistas", afirma o historiador. 

Mais do que a causa de uma crise, o impeachment foi um sintoma da degradação institucional do país: "Todo esse processo de golpe de 2016, a [operação] Lava-Jato, todas essas coisas não foram criadoras da deterioração da democracia brasileira. Foram a expressão, foram os sintomas das fracas raízes da democracia brasileira. Não deve ser vista como causa, mas como consequência", diz Coggiola.

O Brasil de Fato reconstitui, a seguir, o contexto e as principais etapas e personagens do antes, o durante e o pós-impeachment. 

Vitória de Dilma e reação tucana

A reeleição de Dilma Rousseff e de seu vice, Michel Temer, em 2014 foi obtida em segundo turno com 51,64% dos votos válidos, a margem mais apertada de uma eleição presidencial no país. O Brasil já vivia um processo de insatisfação social, com viés reacionário, surgido principalmente a partir das Jornadas de Junho de 2013.

O tucano Aécio Neves, derrotado por Dilma, passou a questionar o resultado eleitoral e chegou a abrir um processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para desgastar e tirar legitimidade da presidente reeleita. Alguns anos mais tarde, em 2017, uma conversa revelada pelo empresário Joesley Batista, da JBS, em seu processo de delação premiada, mostrou Aécio Neves dizendo que a ação que para cassar fora ajuizada pelo PSDB somente para “encher o saco” do PT. Antes, na campanha para o impeachment que teve lugar em 2016, o PSDB e seus líderes tomaram papel ativo.

Crise econômica e pautas-bomba 

A crise econômica iniciada em 2008 começou a se agravar no país logo após a reeleição, no final de 2014, no prenúncio do que viria a ser uma recessão com reflexos até os dias de hoje. O desemprego, que até então girava em torno de 4%, subiu no ano seguinte a 8%, chegando em 13% em 2017. O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, que é a soma de todos os bens e servidos produzidos no país, sofreu quedas consecutivas em 2015 e 2016 que, no acumulado, chegaram a quase 7% de perdas.

Para conter o problema fiscal do governo, Dilma deu uma guinada em sua política econômica e buscou adotar um ajuste para segurar gastos públicos, sob os cuidados do banqueiro Joaquim Levy como ministro da Fazenda, chamado ao governo para tentar implementar essa agenda.

Apesar da tentativa, o governo esbarrou na retaliação promovida por Eduardo Cunha (MDB-RJ), então presidente da Câmara dos Deputados e principal líder, à época, do bloco de partidos reconhecido como centrão. Em vez de pautar o ajuste, Cunha passou a priorizar as chamadas pautas-bomba, projetos de lei que geravam aumento de gastos públicos. Nessa queda de braço, o governo se enfraquecia cada vez mais. 

Popularidade e protestos  

A combinação de crise e instabilidade política fez a popularidade de Dilma cair para apenas 9% de aprovação em uma pesquisa do Ibope realizada em julho de 2015, o mais baixo índice para um presidente até então, só sendo superada alguns anos depois por Michel Temer, que chegou a ter 7% de aprovação. A partir de março de 2015, poucos meses após a reeleição, diversos protestos contra o governo federal reuniam centenas de milhares de pessoas em todo o país para pedir, entre outras demandas, o impeachment ou a renúncia da presidente.

Lava-Jato, chantagem e abertura de processo

Um elemento fundamental na construção do impeachment foi a emergência da operação Lava-Jato, que começou em 2014, mas se intensificou em 2015, como a realização de operações pirotécnicas, forte cobertura midiática e tendo como alvo principalmente integrantes do PT, do MDB e do PP. Um desses alvos era Eduardo Cunha, acusado ter recebido propinas da Petrobras e de manter contas secretas na Suíça. Com o cerco se apertando, Cunha ameaçava nos bastidores aceitar o pedido de impeachment contra Dilma, já com baixa popularidade e sob protestos frequentes, se não contasse com apoio do PT para não sofrer processo de cassação.  

Quando o PT deixou claro, no final de novembro de 2015, o apoio ao prosseguimento do processo contra Cunha na Comissão de Ética, o então presidente da Câmara anunciou, no dia 2 de dezembro, a abertura do processo de impeachment. Dentre os vários pedidos em análise, ele optou por um que era subscrito pelo jurista Hélio Bicudo, um ex-petista, e pelos juristas e advogados Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, e Janaína Pascoal. Um dos argumentos principais do pedido era de que Dilma teria cometido crime de responsabilidade ao editar decretos orçamentários sem prévia autorização do Congresso, no que ficou conhecido como pedaladas fiscais. 

Pedaladas fiscais

Para Osvaldo Coggiola, as pedaladas fiscais foram apenas uma desculpa para caracterizar um inexistente crime de responsabilidade de Dilma. "As pedaladas fiscais foram claramente um pretexto. Se fosse pelas chamadas pedaladas fiscais, deveriam ter sido destituídos não somente o presidente da República, mas todos os governadores do Brasil, porque as pedaladas fiscais eram praticadas sistematicamente por eles e até pelos prefeitos brasileiros", diz.

Ao fazer uma comparação com o momento atual, o historiador Murilo Cleto pondera ser incomparável a postura de Bolsonaro na presidência com qualquer comportamento atribuído à ex-presidente Dilma em seu impeachment. "Embora eu divirja de boa parte dos argumentos do petismo acerca do que foi o impeachment, eu tenho certeza que um argumento não dá pra gente tirar a razão do petismo, que é a desproporção colossal, que existe, entre a gravidade do que representaram as pedaladas fiscais e a enormidade de crimes que tem cometido o Bolsonaro agora na presidência".
 

A Queda

Em 17 de abril de 2016, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o relatório favorável ao impeachment de Dilma com 367 votos favoráveis e 137 contrários, numa sessão que ficou marcada na memória política do país pela sucessão de políticos com discursos em favor da família e dos valores cristãos, e até uma homenagem de Bolsonaro ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi chefe do aparato repressor em São Paulo e um dos responsáveis pela tortura de dezenas de prisioneiros pelo regime militar no país, inclusive da própria presidente Dilma.   

O parecer da Câmara foi então enviado ao Senado, que também formou a sua comissão especial de admissibilidade, cujo relatório foi aprovado por 15 votos favoráveis e 5 contrários. Em 12 de maio, o plenário do Senado aprovou por 55 votos a 22 a abertura do processo, afastando Dilma da presidência até que o procedimento fosse concluído.

Neste momento, o então vice-presidente Michel Temer assumiu interinamente o cargo de presidente. Em 31 de agosto de 2016, Dilma Rousseff perdeu definitivamente o cargo de presidente da República após três meses de tramitação do processo iniciado no Senado, que culminou com uma votação em plenário com 61 votos a favor e 20 contrários ao impedimento.

Atuação da mídia

O papel dos meios de comunicação na cobertura do impeachment de Dilma e, sobretudo, durante a operação Lava-Jato, foi essencial na conjuntura que desencadeou o "golpe parlamentar", é criticado pelo historiador Osvaldo Coggiola. 

"A imprensa, em todos esse processo, em particular no processo da Lava-Jato, teve um papel notável pela ausência de independência. A grande imprensa engoliu a Lava Jato como se fosse um banquete", afirma.

"Agora, estão tentando recuperar [o prestígio] dando cacetada no Bolsonaro. Mas estão dando cacetada no Bolsonaro no momento em que todo mundo toma distância dele. Eles foram atrás dos acontecimentos, ou seja, a configuração democrática da nação brasileira se mostrou extremadamente fraca, inclusive nesse aspecto, que foi a ausência de uma imprensa independente", acrescenta.

Em 2015, a cobertura dos processos que pediam o impeachment da Dilma chegou a interromper a programação normal das várias emissoras. A própria convocação dos protestos chegou a ser divulgada e estimulada em reportagens e programas nos principais meios de comunicação.  

Essa falta de independência de que fala Coggiola ficaria mais clara com as revelações da "Vaza Jato", série de reportagens publicadas pelo The Intercept Brasil, que escancaram uma relação de promiscuidade entre os principais órgãos de imprensa do país e os procuradores da Lava Jato, que resultou em uma cobertura celebratória e acrítica da operação e do juiz que a coordenava. 

Para o historiador Murilo Cleto, em que pese o viés da mídia em relação ao lavajatismo e à promoção de uma agenda neoliberal na economia, seu papel no atual momento histórico do país tem relevância. 

"Se você for olhar, a postura desses mesmos meios de comunicação em relação ao próprio Bolsonaro, é uma postura absolutamente crítica. Eles, em geral, demonstram uma simpatia à agenda da Lava Jato e à agenda liberal, mas, por outro lado, são veículos fundamentais pra descobrir esquemas da família Bolsonaro, que até então nunca ninguém tinha descoberto. Eles têm sido fundamentais agora na cobertura da pandemia, divulgação do número de infectados, mortos e por aí vai", pondera.

Edição: Vinícius Segalla