Durou menos de três dias a tentativa de doze gigantescos clubes da Espanha, Itália e Inglaterra que pretendiam criar uma liga com um supercampeonato próprio, concorrente da não menos milionária Champions League. A implosão definitiva se deu após a saída de seis clubes ingleses pressionados pela opinião pública, torcedores, técnicos e jogadores.
Ironicamente, a Inglaterra é a precursora da financeirização do futebol que abriu caminho para a proposta da Superliga. O mais popular dos campeonatos em termos midiáticos, a Premier League foi fundada em 1992 quando os clubes romperam com a centenária Football League por fatias maiores dos direitos televisivos.
E, com um atributo difícil de ser medido – quanto vale um gol de Messi? - o futebol se tornou um destino cômodo para a lavagem de dinheiro e para especulação. Desde os anos 1990, com a conversão de diversos times em clubes-empresas, a financeirização do esporte avançou a passos largos. Dos doze clubes proponentes da nova liga, apenas Barcelona e Real Madri pertencem aos sócios, os outros dez clubes são propriedades de milionários russos, chineses e americanos ou de fundos de investimentos. Na segunda-feira (19), após o anúncio da Liga, as ações da Juventus e do Manchester United dispararam na bolsa de valores.
Tanto que o negócio não se limita aos supertimes. O Leicester, que até 2012 disputava a segunda divisão inglesa, é propriedade de um milionário tailandês. Fundos norte-americanos são donos de 12 clubes europeus. E em 2019, 45 clubes europeus tiveram suas propriedades negociadas e no ano passado, outros 20 foram negociados.
Por isso, nenhuma supresa que por trás da Superliga fracassada não estava apenas o Real Madrid, mas o banco JP Morgan Chase, que confirmou ao The Guardian que investiria US4,5 bilhões para criar a nova liga. É provável, pelo sigilo envolvendo os detalhes da operação, de que o JP Morgan Chase seja a face visível de outros investidores e há especulações de que o projeto da Superliga envolveria a Amazon, cuja intenção é levar as transmissões esportivas ao vivo para o seu serviço de streaming, vinculando os clubes e os esportes com as vendas de produtos no seu site. A aproximação com o Flamengo no Brasil se dá neste contexto. E, ao mesmo tempo, a multibilionária empresa disputaria o segmento com outro conglomerado, a Disney, proprietária dos canais Fox Sports e ESPN.
Tampouco a maior adversária à criação da nova superliga, a União das Associações Europeias de Futebol (UEFA), pode ser considerada uma opositora ao modelo. Desde que o brasileiro João Havelange assumiu a presidência da entidade máxima do futebol, a FIFA, a mercantilização do esporte foi elevada a níveis globais, e, principalmente, um “modelo de negócios” foi criado: os direitos de transmissão dos eventos eram administrados por empresas que envolviam os dirigentes e fabricantes de materiais esportivos. A venda destes direitos passava pelo suborno ou divisão de lucros com os dirigentes da FIFA que aprovariam a concessão, mas também a escolha de países-sedes dos campeonatos, onde dirigentes locais também participavam do esquema.
Tudo isso envolvendo sonegação de impostos e paraísos fiscais. O funcionamento do esquema está largamente documentado no processo da Justiça americana que prendeu diversos dirigentes, entre eles, o ex-presidente da CBF José Maria Marin por fraude bancária, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Mas, a CBF não era a única associada a reproduzir o “padrão FIFA”. O ex-jogador e ex-presidente da UEFA Michel Platini foi preso por corrupção na investigação sobre a escolha do Qatar para sediar a próxima Copa do Mundo.
Por isso, a verdadeira oposição à Liga veio dos torcedores. Historicamente, os clubes de futebol foram criados a partir de identidades territoriais, um bairro ou uma cidade, uma classe ou etnia. E em alguns casos, com todas elas combinadas. O futebol de Wall Street e da City londrina precisam que seus clubes percam estas identidades bem demarcadas para que sejam globalmente consumidas. O sonho dos clubes europeus é um modelo semelhante à NBA e a NFL, as organizadoras do basquete e do futebol americano respectivamente, onde os clubes seriam marcas de consumo globais.
Ao invés dos operários de Manchester, é preciso que sua identidade seja genérica o suficiente para ser adotada e consumida por um jovem brasileiro ou chinês, que não conhece o clube pelos estádios do seu bairro ou da sua cidade, mas pelos videogames ou pelas transmissões de TV. Um torcedor que talvez nunca veja a sua equipe ao vivo. É reinventar o futebol descartando o que lhe define, os laços de identidade socialmente construídos, substituindo por preferências de consumo. É esta contradição que Wall Street não consegue resolver e por isso que há anos os verdadeiros torcedores de Arsenal, Manchester United e Liverpool travam batalhas constantes e protestam contra os respectivos milionários que compraram seus clubes. O fracasso da Superliga foi apenas o episódio mais recente.
Wall Street gostaria de repetir nos campos o movimento do capital financeiro, cada vez mais fictício e descolado de uma base material. Livre para especular. O problema é que o futebol é humano, demasiadamente humano, para aceitar.
Edição: Rodrigo Durão Coelho