Embora muita gente acredite que todos nós somos iguais, essa assertiva é injusta e não verdadeira
A pandemia não é a mesma para todos: negros – pretos e pardos, de acordo com a denominação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – morrem mais do que brancos em decorrência da covid-19 no Brasil. A assertiva pode ser verificada a partir de dois estudos realizados neste um ano de pandemia, um do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio e outro do Instituto Pólis.
No primeiro, ficou demonstrado que, enquanto 55% de negros morreram por covid, a proporção entre brancos foi de 38%. Na segunda pesquisa, o Instituto Polis mostrou que a taxa de óbitos por covid-19 entre negros na capital paulista foi de 172/100 mil habitantes, enquanto para brancos foi de 115 óbitos/100 mil habitantes.
O acesso desigual à saúde também se reflete na vacinação. Uma reportagem da Agência Pública de março deste ano apontou para a discrepância entre brancos e negros vacinados: 3,2 milhões de pessoas que se declararam brancas receberam a primeira dose do imunizante contra o novo coronavírus. Já entre os negros, esse número cai para 1,7 milhão.
Nas palavras de Márcia Pereira Alves dos Santos, integrante do Grupo de Trabalho (GT) Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e docente colaboradora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “embora muita gente acredite que todos nós somos iguais, essa assertiva é injusta e não verdadeira. Nós somos diferentes”. Quando se olha para os dados, afirma Santos, “é fácil reconhecer que determinados grupos são afetados de forma desigual”.
“Na prática, isso quer dizer que, para determinados grupos, as condições de vida afetam de forma a torná-los mais expostos ao adoecimento e à morte. No cenário brasileiro, este grupo com maior risco de adoecer e morrer é representado, considerando a covid, pela população negra”.
Da mesma maneira, o cenário se repete em outros lugares do mundo. Nos Estados Unidos, bairros negros, historicamente segregados, foram menos testados, mas, ao mesmo tempo, apresentaram mais resultados positivos para a covid-19.
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De acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, pessoas que moram em áreas mais vulneráveis têm 23% mais chances de contrair a doença, 32% mais chances de vir a óbito e 29% menos chances de ser testadas.
Ausência de ação governamental
Se, por um lado, os dados mostram que a população negra é a que mais sofre com a pandemia, por outro, evidenciam a ausência de uma ação governamental eficaz, avalia Santos.
Só em abril de 2020 que o Ministério da Saúde começou a incluir a informação sobre raça e cor nos boletins epidemiológicos, após pressão de movimentos sociais, como a Coalizão Negra Por Direitos e o GT Racismo e Saúde da Abrasco.
A inclusão das informações nos boletins auxilia gestores a planejarem estratégias, apoiar as tomadas de decisão e estabelecer um canal de comunicação com a sociedade.
Ou seja, se o governo federal não distingue qual parcela da população está mais exposta ao vírus, torna-se inviável traçar estratégias para encontrar soluções.
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“Sem que os dados sejam obtidos de uma forma que expressem como as pessoas adoecem, morrem ou se curam, fica distante o manejo da pandemia de forma justa. É preciso considerar questões como raça, cor, etnia, classe social, gênero e geração no risco de adoecer e morrer por a covid para que o seu gerenciamento seja pleno e adequado”, explica Santos.
“Apesar dos esforços, o sistema brasileiro insiste em ignorar esses marcadores sociais. Assim, a abordagem da pandemia na perspectiva étnicarracial é premente, por ser uma oportunidade de encarar as desigualdades raciais tão marcadamente presentes em nosso país, e de forma definitiva. Caso contrário, os negros continuarão sendo os primeiros na fila de óbitos e os últimos na fila da imunização”, afirma Santos.
No Brasil, a primeira vítima fatal da doença foi Cleonice Gonçalves, de 63 anos. Ela contraiu o vírus de sua patroa, que voltava da Itália para o Rio de Janeiro. Gonçalves era mulher, negra, hipertensa, diabética e empregada doméstica.
Sua morte ganhou as manchetes de jornais internacionais, como em reportagem da Reuters: “a Brazilian woman caught coronavirus on vacation. Her maid is now dead” (“Uma mulher brasileira pegou coronavírus nas férias. A ‘empregada’ dela agora está morta”, em tradução livre).
Edição: Poliana Dallabrida