Passageira passa mal e morre dentro do avião em voo saindo de Roraima. Essa notícia, publicada no dia seguinte à sua morte, ocorrida no dia 2 de abril, foi logo confirmada pela GOL Linhas Aéreas.
Na nota, a companhia aérea, que tratou o caso como um “incidente”, dizia que “uma passageira passou mal a bordo”, mas não citava o nome da vítima ou detalhes do caso. A Amazônia Real apurou que a haitiana Elunise Clervil, de 27 anos, estava a bordo do voo G3-4984 quando passou a ter convulsões “com espuma pela boca”. Ela estava grávida de sete meses mas, segundo um passageiro da aeronave, foi confundida como “mula” do tráfico de drogas.
O voo da GOL, que iria para Brasília, fez um pouso de emergência em Manaus, capital do Amazonas. O socorro médico foi prestado à Elunise Clervil pela Infraero. O óbito foi atestado às 16h01 (17h01 em Brasília), menos de duas horas da passageira ter embarcado no avião em Boa Vista, às 14h42.
“Meu Deus, como assim? Ela, minha mulher? Suspeita de ser traficante? Oh, meu Deus, como assim? Minha mulher é crente. Nunca usou nem álcool ou cigarro”, revoltou-se Valmyr Westerley, ao conversar com a reportagem (Leia entrevista completa no final do texto). “Dizem que minha mulher morreu por falta de atenção e atendimento. Por preconceito racial e da pele. Parece que tinham medo de tocar nela. Se não tivessem medo, eles socorreriam, e ela não morreria com o filho na barriga.”
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Ainda no dia 2 de abril, em São Paulo, o condutor de tratores Valmyr Westerley se preparou para receber a esposa Elunise Clervil para uma nova vida do casal. A aeronave Boeing 737, da Gol Linhas Aéreas, deveria fazer uma escala por volta das 19h30 em Brasília, no Distrito Federal. Aguardando no aeroporto de Guarulhos, Valmyr achou estranho que ela não tivesse chegado no horário previsto, depois de meia-noite, e passou a procurar a mulher.
Ele não sabia o que havia se passado a bordo do voo G3-4984. Às 15h37 daquele dia 2 de abril, a torre do Aeroporto Eduardo Gomes recebeu do avião o pedido de autorização para um pouso de emergência em Manaus. Às 16h, uma equipe médica da Infraero entrou no avião e atestou a morte da passageira.
“Presumiram que uma mulher negra, indo de Boa Vista com destino a São Paulo, começou a passar mal, espumar pela boca, era mula [do tráfico de drogas]. Ela não poderia ser uma mulher negra, grávida, que estaria indo encontrar o marido em São Paulo?”, protestou a advogada Dessana Paiva, da Pastoral do Migrante em Manaus. “O nome disso é racismo estrutural. Ninguém abriu a bolsa dela, onde estava tudo: fraldas, pasta com o caderno de anotações da gravidez, toda a documentação, com regimento médico.”
Segundo a plataforma Brasil de Direitos, racismo estrutural é a “naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial”.
Morte por edema no pulmão
Procurada pela reportagem da Amazônia Real, a Infraero disse em nota que “a equipe médica do aeroporto, ao chegar à aeronave, prestou os primeiros atendimentos, mas ela não resistiu. Em seguida houve o acionamento do Instituto Médico Legal (IML) para a retirada do corpo. A Infraero lamenta a morte da passageira e sugere que outras informações sejam solicitadas à empresa aérea”. A Infraero negou que a empresa GOL tenha deixado o corpo de Elunise no saguão do aeroporto Eduardo Ribeiro, como chegou a ser divulgado na imprensa de Manaus.
O Instituto Médico Legal (IML) do Amazonas informou à reportagem que foi acionado às 16h30 em 2 de abril e deixou expresso na nota oficial que havia a suspeita da morte por ingestão de entorpecentes. “O laudo inicial apontou que a mulher morreu em decorrência de um edema agudo no pulmão. Ainda de acordo com os exames preliminares, não havia resquícios de entorpecentes no estômago ou no intestino dela”.
Foi o IML que atestou também que a passageira estava grávida de sete meses de gestação e guardou a maleta de Elunise, onde havia os documentos, exames, os anéis – inclusive o do casamento – as roupinhas e fraldas do bebê. As mortes foram atestadas às 16h01.
Há normas para mulheres grávidas em aviões por cada empresa aérea, inclusive a GOL. A companhia aérea não comentou sobre o atendimento às mulheres grávidas dentro de suas aeronaves.
A migração para o Brasil
O condutor de tratores Valmyr Westerley e a cabeleireira Elunise Clervil se casaram em 17 de fevereiro de 2020 em Cap-Haïtien – palavra em francês que em português significa Cabo Haitiano, uma comunidade do norte do Haiti. A festa do casamento foi realizada segundo a tradição religiosa e familiar daquele país, com comida e bebida e muitos planos. E entre os planos estava o de migrar para um outro país.
No mês seguinte, o casal, que só fala o idioma crioulo, deixou a terra natal e cruzou as fronteiras com a República Dominicana e o Panamá. Dentro das maletas, Valmyr e Elunise guardavam os sonhos de ajudar os parentes que ainda enfrentam as consequências do terremoto no Haiti no ano de 2010. Mas tiveram de enfrentar o medo e as ameaças dos coiotes (homens que fazem as travessias cobrando em dólar).
No dia 2 de março do ano passado, eles atravessaram a fronteira da Guiana com o Brasil e, como já fizeram os mais de 100 mil refugiados haitianos nos últimos 11 anos, buscaram um refúgio para ter uma vida melhor.
Em Boa Vista, o casal Valmyr e Elunise trabalhou duro para sobreviver e alugar uma pequena casa. O plano aumentou as despesas, mas era necessário, pois ela ficou grávida. Com o agravamento da pandemia da Covid-19 e o isolamento social, Valmyr perdeu a fonte de renda como ajudante de pedreiro ou de camelô nas ruas.
A esposa perdeu os clientes das tranças que fazia nos cabelos de haitianas. Sem recursos, o casal não tinha como pagar aluguel, e foi despejado. Um amigo os abrigou “no puxadinho” de uma casa. Vendo a fome aumentar e a expectativa diminuir, Valmyr aceitou um convite do pastor evangélico Augustin Laguerre para viajar no fim de março para São Paulo.
Em entrevista à Amazônia Real, traduzida pela intérprete de crioulo haitiano Gloriane Aimble Antoine, Valmyr Westerley, 27 anos, disse que o dinheiro que juntou só deu para comprar uma passagem, então ele foi para São Paulo no dia 26 de março. “Ela (Elunise) ficou na casa de um amigo haitiano em Boa Vista. Quando cheguei em São Paulo, meus amigos se juntaram para comprar a passagem da minha mulher”, disse Valmyr.
As horas de angústia
Em São Paulo, no dia 3 de abril, Valmyr continuava a aguardar Elunise na casa do pastor Augustin Laguerre. “A GOL não fez contato, só descobrimos por causa de uma outra reportagem da TV de Boa Vista e porque procuramos na internet”, contou o pastor à reportagem. Ele disse que entrou em contato com conhecidos em Manaus e descobriram que o corpo estava no IML da capital amazonense. “A GOL Linhas Aéreas informou que está prestando toda a assistência aos familiares de Elunise. Isso Valmyr nega completamente. Nem para ir de São Paulo para Manaus eles (a GOL) ajudaram”, desabafou Laguerre sobre a empresa.
A reportagem perguntou ao IML do Amazonas se foi a companhia aérea que levantou a suspeita de tráfico de drogas na morte de Elunise Clervil. O órgão respondeu que o questionamento foi levantado por jornalistas, que inclusive perguntaram se havia suspeita de tráfico de pessoas. Também informou que solicitou informações da Polícia Federal “para verificar se a vítima possuía prontuário de refugiado” e “também acionou a Embaixada ou o Consulado do Haiti, para que seja prestado o apoio necessário à cidadã daquele país, tanto no que se refere à localização de familiares, eventual traslado do corpo e/ou sepultamento”.
Ciente de toda situação que estava enfrentando, uma tragédia familiar tão devastadora em sua vida como o terremoto de 2010, o condutor de tratores Valmyr Westerley chegou a Manaus em 12 de abril. Nesse mesmo dia, ele registrou um Boletim de Ocorrência no 6º Distrito Integrado da Polícia Civil do Amazonas, solicitando uma investigação sobre “morte a esclarecer consumado – (doloso)”.
A Polícia Federal no Amazonas registrou a ocorrência da morte de Elunise Clervil dentro do avião da GOL, no dia 2 de abril, mas não informou se instaurou inquérito para investigar a omissão no atendimento da saúde da passageira grávida. Procurada pela reportagem, a PF não deu retorno.
A advogada Dessana Paiva, da Pastoral do Migrante em Manaus, avaliou como “gravíssima” a situação vivida pelo casal Valmyr Westerley e Elunise Clervil; ela como passageira da empresa GOL e ele ao pedir o atendimento à companhia aérea. “A GOL nem se responsabilizou em transportar o corpo dela para o Haiti, como outras companhias fazem em casos assim”, disse a advogada.
Procurada, a empresa GOL enviou a mesma nota enviada anteriormente à imprensa a respeito do caso, reafirmando que não fornece informações sobre os clientes. “A GOL se sensibiliza pelo ocorrido e informa que está prestando toda a assistência aos familiares da Cliente. A Companhia ressalta ainda que ofereceu suporte aos demais passageiros para seguirem viagem até o destino final”.
Com o apoio da Pastoral do Migrante da Igreja São Geraldo, em Manaus, Valmyr conseguiu fazer o reconhecimento do corpo de Elunise Clervil e do bebê. O sepultamento de ambos aconteceu no dia 14 no cemitério municipal Nossa Senhora Aparecida, com o apoio do SOS Funeral, destinado às pessoas pobres pela Prefeitura de Manaus.