Que azar! Que azar!... Sou feliz
Minha amiga Maria das Dores merecia o nome que tinha. Gostava de sofrer. Quer dizer, gostava, não. Nunca tinha sofrido: queria sofrer, mas não sofria.
Bem formada, com um bom emprego público, vivia bem e se sentia culpada por isso.
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Achava que nasceu para ser uma Joana D’Arc, mas o destino não ajudava. Em vez de sofrer tudo o que queria e idealizava, levava uma vida sem percalços.
Uma vez ela me disse:
- Eu queria mesmo era ser margarida - que é como chamam varredoras de rua em São Paulo. Margarida é o feminino de gari.
Quando conheceu dois ex-presos políticos, ela disse:
- Eu gostaria tanto de ter sido presa e torturada...
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Aí eu protestei:
- Ô, das Dores... então por que nunca entrou numa organização de esquerda? Muito provavelmente teria conseguido.
O certo é que, cada desgraça que acontecia com outras pessoas, lamentava que não tinha acontecido com ela.
Continuava me falando dos seus sonhos malucos de ser martirizada, passar fome, mas nada disso acontecia...
Entre suas vocações não realizadas, estava a de ser boia-fria, lavadeira em beira de rio, morar numa favela bem precária, ser sertaneja nordestina da região que sofria durante uma seca braba, prostituta de beira de estrada e até mãe de família na Somália, país que passava por uma guerra muito violenta.
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Uma época, teve impressão que conseguiria pelo menos ser vítima de preconceito e ter que enfrentar barreiras. Foi quando começou a namorar o Ovando, um homem negro muito legal, e o levou pra morar com ela. Achava que a vizinhança, toda branca e de classes remediadas, iria implicar com o casal, e que até amigos se afastariam.
Mas os amigos elogiaram muito sua atitude e até convidavam mais a dupla para noitadas em bares e viagens. E o Ovando era festejado pela vizinhança, como pessoa educada e correta, de bom relacionamento.
Depois de um ano morando com ele, parecia que tinha se tornado uma mulher normal, sem a mania de sofrer. Mas foi vista pela amiga Marieta chorando no banheiro da repartição em que trabalhava. A amiga ficou preocupada, perguntou o porquê do choro e a Maria das Dores respondeu:
- Que azar! Que azar!... Sou feliz.
Edição: Daniel Lamir