A poucos meses de completar mil dias à frente do Planalto Central, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) se notabiliza pela forma singular como conduz a nação: na base do ataque aos seus opositores políticos ocasionais, além de exercer pressão e ameaças às instituições que buscam colocar freios às suas escaladas autoritárias.
Em verdade, não se pode alegar desconhecimento daquilo que seria o modus de operar do atual governo federal, pois mesmo antes de assumir a faixa presidencial, o então deputado federal, em 2018, expressamente sentenciou “vamos fuzilar a petralhada” em discurso oficial de campanha no Acre, lançando, assim, a sua plataforma política.
Como promessa é dívida, Bolsonaro – numa só tacada – assinou quatro Decretos Presidenciais, os quais, dentre outras medidas, flexibilizam a aquisição de armas de fogo e munições no país; aumentam de quatro para seis o número de armas que uma única pessoa pode deter; permitem que juízes e policiais possam adquirir mais de duas armas de uso restrito; e, ampliam a quantidade de munição para colecionadores, atiradores e caçadores.
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Por representar tamanho risco de aumento da prática de crimes violentos, como feminicídio e principalmente o homicídio, além de inevitável ameaça institucional – uma vez que os seguidores mais inflamados do presidente não encontram limites em defesa de suas pautas –, o Supremo Tribunal Federal (STF), através de liminar deferida parcialmente pela ministra Rosa Weber no último dia 12 de abril, suspendeu trechos das normas que flexibilizam a posse e porte de armas no bojo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n.º 6.675/DF) ajuizada pelo PSB.
Não por coincidência, no mesmo dia em que se suspendeu parcialmente os decretos, Bolsonaro voltou a lembrar que a violência é mote de sua gestão.
O presidente ameaçou “sair na porrada” com o senador Randolfe Rodrigues, autor do requerimento de criação da Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPI) para apurar ações e omissões do governo federal na condução desastrosa da pandemia de Covid-19 – em gravação tornada pública pelo também senador Jorge Kajuru, interlocutor do diálogo revelado com o presidente.
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Como ignora por completo qualquer direito que se contraponha às suas pretensões autoritárias, a exemplo do exercício parlamentar da minoria no Senado Federal no que diz respeito a iniciativa de instalação de CPI (prerrogativa com assento constitucional inscrita no art. 58, §º 3 da CF), Jair Bolsonaro atacou diretamente o ministro Roberto Barroso, responsável pela liminar que assegurou a instalação da referida CPI, acusando-o de conspiração contra o seu governo.
Ao agir assim, o pai do zero um, dois, três e quatro, atua de forma intencional, convulsionando os poderes, agitando e inflamando seus seguidores e bradando que não tem condições de governar o país – sem levar em consideração que não governa ou devido à falta de vontade ou de aptidão – por força de intervenções permanentes dos demais poderes e instituições da nação.
Nesse particular, vale lembrar que o presidente também acusou falsamente o STF de impedi-lo de agir no enfrentamento da pandemia da covid-19, na medida em que a Corte máxima de Justiça apenas aclarou que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios possuem competência concorrente no campo da saúde para combater a escalada de propagação do coronavírus, impedindo, dessa maneira, que o negacionismo do presidente vitimasse ainda mais brasileiros.
Assim, o ex-deputado federal aposta na instalação do caos, buscando, com isso, um desejável rompimento institucional capaz de ensejar a invocação de normas de exceção para suspensão de direitos e garantias fundamentais.
Bolsonaro nunca escondeu que era um admirador de ditadores, como Pinochet, e que tinha adoração por torturadores que estupravam mulheres, como o Ustra. Isso ficou claro desde a campanha, quando reciclou o slogan "ame-o ou deixe-o" e disse que o destino de opositores deveria ser o cemitério ou o aeroporto, desejando, desde então, impor uma ditadura no Brasil.
Com a instalação da almejada barbárie, Bolsonaro poderá convocar o (seu) exército não oficial para pôr em campo a eliminação das indiferenças, varrendo-se do mapa qualquer tipo de resistência democrática.
A dúvida que ainda paira é saber se Bolsonaro ainda possui apoio necessário junto às polícias militares para que a tragédia não se torne uma comédia, a ponto de o presidente e seus filhos sequer conseguiam descer a rampa do Palácio do Planalto sem a escolta dada aos golpistas fracassados que os seguem.
Também não se diga que era impossível prever o desastroso governo antes do então candidato presidencial assumir o poder, pois Bolsonaro – conhecido por seus atos de indisciplina e deslealdade no exército – chegou a elaborar um plano de explosão de bombas em quarteis e pontos estratégicos no Rio de Janeiro, como forma de reivindicar melhores vencimentos. Eis o perfil autossabotador do atual líder da nação, tão pretérito quanto sua própria existência enquanto figura pública.
Com efeito, Bolsonaro não pode ser presidente do Brasil em pleno ano de 2021 porque, apesar da faixa presidencial em seu peito, jamais assumiu a responsabilidade do cargo, que parece estar à deriva desde 1º de janeiro de 2019. Como herdeiro do patrimonialismo político mais rasteiro, aceitou o bônus do cargo, mas negou ônus dele decorrente.
Bolsonaro sequer recebe apoio para imposição de uma ditadura porque não possui um projeto de poder, muito menos de país. Seu projeto é manter-se no poder o maior tempo possível para impedir que desvios cometidos por ele e por seus filhos sejam investigados, julgados ou condenados por peculatos (rachadinhas), por empregar funcionários fantasmas ou mesmo por ter que esclarecer as dúvidas que todos temos sobre a morte de Marielle Franco.
Com um projeto exclusivamente pessoal, Bolsonaro se viu abandonado até mesmo pelo setor autoritário de parte das Forças Armadas e não conta com apoio de qualquer pessoa com um mínimo de juízo, buscando aprovação apenas de um grupo tresloucado que se alimenta de fake news e cloroquina enquanto ignora a realidade com dólar alto, inflação crescente, combustível em preços abusivos, falta de leitos em hospitais e pessoas miseráveis abandonadas nas calçadas e faróis.
Por tudo que foi dito, Bolsonaro não pode ser cobrado enquanto representante maior da nação porque jamais fez qualquer juramento em defesa das minorias e do pluralismo político, um dos pilares da República (art. 1, inciso V, da Constituição Federal).
Bolsonaro igualmente não pode enfrentar as inúmeras crises (econômica, sanitária, educacional, social e ambiental) produzidas até o presente momento nesse clima de guerra interna provocada intencionalmente pelo antigo Capitão, pois ele não reconhece a existência, a legitimidade e os limites do posto.
Logo, é ilógico esperar – ou até mesmo exigir – que Bolsonaro adote uma postura republicana condizente ao chefe de qualquer nação de cariz democrática, pois ele é sem nunca ter sido.
O título do presente ensaio tinha tudo para ser uma simples alusão ao divertido e superado hit de Valesca Popozuda, mas infelizmente é uma forma permanente de governo. Ou enfrentamos as ameaças e os ataques com seriedade e contundência para preservação das instituições, com todas as consequências decorrentes; ou consentimos com a reprodução indeterminada da canção, pois bateu de frente, o futuro do País será só tiro, porrada e bomba.
*André Lozano Andrade é advogado criminal, mestre em Direito Penal pela PUC/SP, professor de Direito Penal e Processo Penal, Conselheiro de Prerrogativas da OAB-SP e Conselheiro da Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH).
Eduardo Samoel Fonseca é advogado criminal, mestre em Processo Penal pela PUC/SP, professor de Direito Penal e Processo Penal e Presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP – Subseção Penha de França.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Poliana Dallabrida