Tigrada era o nome dado a quem operava nos intestinos das forças armadas
Quarenta anos atrás, o corretor de imóveis Mauro César Pimentel estacionou seu carro no pátio do Riocentro, um centro de convenções na zona oeste do Rio, por volta das 21h. Quando passava por um Puma, de placas OT-0279, percebeu algo esquisito. No carro, havia três cilindros, dois no banco traseiro e um terceiro no colo do homem no banco do carona. O homem olhou para ele e o mandou cair fora. Como esquecera algo no carro, teve de voltar e passar pelo Puma de novo, quando tomou outra pancada:
- Sai daqui agora, seu filho da puta!
Afastava-se quando ouviu o estrondo as suas costas. Correu até o Puma e retirou dele um homem de olhos esbugalhados, o braço queimado e a barriga aberta e lavada em sangue. Na carteira do moribundo, viu que era um capitão do exército. Disparou em busca de ajuda mas, ao retornar, não havia mais ninguém. Assustado, procurou um amigo militar para saber o que fazer. A resposta foi curta: “Se você quer viver e constituir família, se quer ser alguém na vida, se cale. Se você contar e disser que me contou, eu vou negar”.
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Pimentel só falaria mais tranquilamente ao depor perante à Comissão Nacional da Verdade já no século seguinte. Tornou-se testemunha da última grande ação da "tigrada". O nome se refere ao pessoal que operava nos "intestinos" das forças armadas, seja da repressão – leia-se prisão, tortura, assassinato, desaparecimento – seja nos serviços de informação que, no ocaso da ditadura, aderiu ao terrorismo de ultradireita. O “agente Wagner”, que estava com o cilindro no colo e morreu na hora, e o “doutor Marcos”, que Pimentel retirou do Puma, eram dessa turma.
O capitão Wilson Machado, codinome “doutor Marcos”, e o sargento Guilherme Pereira do Rosário, vulgo “agente Wagner”, pretendiam uma jogada em alto estilo. De 1979 a 1981, o Brasil sofrera mais de 50 atentados a bomba. Os alvos eram jornais, a OAB, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e dezenas de bancas de revista, onde eram vendidas publicações alternativas que trombavam com o regime.
A dupla pretendia detonar várias bombas – duas delas explodiram, uma acidentalmente no colo do sargento, e outra junto à casa de força do local. Deveriam provocar pânico no show de 1º de Maio que acontecia no Riocentro. Em cena estavam Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Chico Buarque, Alceu Valença, Paulinho da Viola, Gal Costa, Elba Ramalho, Beth Carvalho e muito mais gente. Na plateia, mais de 15 mil espectadores.
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Outra das bombas deveria explodir sob o palco. Haveria corte de energia. Milhares de pessoas assustadas e na escuridão procurariam os 28 portões, dos quais somente cinco não estavam trancados por fora.
Machado e Rosário eram a ponta do esquema. Havia muito mais gente participando ou dando cobertura. Alguns picharam os arredores com a sigla VPR, da Vanguarda Popular Revolucionária, organização da luta armada destroçada havia oito anos. O complô visava causar comoção popular, jogar a culpa na esquerda e travar a abertura política, desatando uma caçada implacável aos adversários. Expressão das cloacas do regime, a tigrada temia perder prestígio e poder com o sopro de ventos mais democráticos.
“Deu tudo errado”, teria murmurado o capitão Machado após a cirurgia que lhe recolocou as vísceras no interior do abdômen. Deu errado também para o exército, desmoralizado perante o país na tentativa de encobrir os fatos através de um IPM tabajara.
Deu errado mas, 40 anos depois, a serem completados na próxima sexta-feira (30), a tigrada está com a bola cheia. Difícil imaginar um presidente mais afinado com o sentimento da tigrada do que Jair Bolsonaro. As evidências abundam.
A começar pelo prazer em planejar atentados com bombas. Isto pelo lado recreativo. Pela afinidade política e ideológica nem se fala. Bolsonaro, não é demais notar, tem no coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do açougue chamado DOI-Codi, seu ícone sublime. Não exibe a mesma reverência aos cinco ditadores de 1964/1985.
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No Riocentro, a tigrada atacava duas coisas que detestava: trabalho e cultura. Não se pode dizer que Bolsonaro, com a política devastadora de Guedes e com o sucateamento da vida cultural do país, faça melhor juízo de ambos.
Se o conteúdo é igual, a embalagem rivaliza. Às mães que procuravam os restos mortais de seus filhos, uma placa na porta do gabinete do deputado Jair informava que “quem gosta de osso é cachorro”. É algo que não desafinaria da sensibilidade e do vocabulário das masmorras.
Mais de uma vez, Bolsonaro recorreu à gíria “ponta da praia” como promessa de punição aos desafetos. No jargão militar, é um lugar de execução de presos políticos. “Vamos fuzilar a petralhada”, já garganteou. Antes, opinou que o erro da ditadura foi torturar e não matar e que o assunto somente seria resolvido com a morte de “uns 30 mil”.
Sordidez, prepotência e boçalidade se assemelham em modo ostentação. Também a sedução pela ideia da morte alheia demonstrada, por exemplo, na exaltação do incrível “CPF cancelado”, termo que traz o bodum das milícias, onde foi gerado. Milícias que não são estranhas aos afetos da família Bolsonaro.
Aliás, finda a ditadura, parte da tigrada prosseguiu sua obra na vida miliciana ou assemelhada. Mas essa afeição não empolgou a maioria. Talvez haja aqui, enfim, uma diferença.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Poliana Dallabrida