COVID-19

Pari-c: Projeto analisa impactos e respostas à Covid-19 nas comunidades indígenas

O trabalho envolve pesquisadores indígenas e não indígenas em modelo de desenvolvimento inédito

Brasil de Fato | Imperatriz (MA) |

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Como os povos indígenas estão respondendo à covid-19? Essa é pergunta central da Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (Pari-c), um projeto que será desenvolvido ao longo de todo o ano de 2021 de forma remota, contando com uma rede de mais de oitenta pesquisadores indígenas e não indígenas.

Financiada pelo Conselho Médico de Pesquisa (MRC) da agência de Pesquisa e Inovação do Reino Unido (UKRI), a PARI-c é resultado de um acordo de cooperação internacional entre a Universidade de Londres (City University), no Reino Unido, a Universidade de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a Universidade do Sul da Bahia (UFSB) e a Universidade de São Paulo (USP), no Brasil.

Entre os pesquisadores indígenas de diversas etnias está Sheila Apinajé, professora e técnica em enfermagem, atuando na linha de frente do combate ao avanço da covid-19 entre os povos Apinajé.

Ela explica que a pandemia trouxe muitas mudanças aos povos indígenas, entre elas a suspenção de rituais culturais milenares que reuniam indígenas de outras aldeias por uma semana ou até um mês juntos, como as corridas de tora.

“Mudou toda a rotina de convivência. As festas culturais não foram mais praticadas. A única coisa que permaneceu foram as pinturas, mas como se estivesse de luto, se guardando, como se não pudesse agir de outra forma. Foi um momento de muita tristeza e é até hoje, não temos muitas comemorações”, lamenta.

Por reunir pesquisadores de etnias diversas, o projeto Pari-c proporciona também uma troca de saberes, de maneiras de vivenciar a pandemia e buscar soluções entre cada povo indígena. Sheila destaca, por exemplo, a falta do ritual de velório - relatada por alguns povos e que chamaram sua atenção - pois na sua aldeia, ninguém faleceu por covid-19 até o momento.

“A gente conhece como eles agem em resposta à pandemia, cada população, por exemplo, tem várias pessoas que relatam casos de morte que eles não são velados na sua comunidade, são velados na cidade, mas nós temos um ritual muito forte de velório. Deus, que nós chamamos de Tirtũm, ele está guardando nós, para não haver morte, porque a gente tem o ritual de pintar o morto, de banhar, então se for morrer pela covid, não pode passar para o restante da comunidade”.

Confira entrevista completa com Sheila Apinajé ao programa Bem Viver: 

Brasil de Fato: Na sua pesquisa você fala que no início da pandemia os apinajés sofreram um grande impacto psicológico com a covid, porque lembra outra pandemia que quase acabou com o seu povo. O que contam os anciões?

Sheila Apinajé: É, essa doença quando chegou aqui no nosso país, quando vimos os noticiários, a primeira coisa que os anciões e os Pajés recomendaram foi de evitar. Eles ainda tinham memória viva da doença passada, da gripe espanhola, que no meu artigo tratei do Mêa, que era uma doença parecida com a covid-19, então a vivência do passado, fez com que a gente prevenisse ainda mais essa doença de agora, atualmente. Isso que fez com que retardasse a entrada da covid-19 dentro do nosso povo Apinajé, aqui no estado do Tocantins.

Todos nós, indígenas, nos mobilizamos, começamos a criar nossas barreiras. No primeiro momento foram criadas barreiras nas entradas das aldeias, mas não teve muito sucesso, aí começaram a pensar em uma estratégia rápido, porque o índio Apinajé monta estratégias rápido, de conter conflitos… porque como já tivemos muitas guerras sangrentas, como a demarcação das terras, isso fez com que as mulheres também se mobilizassem.

Começamos a criar as barreiras sanitárias como medida de prevenção. Foram criadas barreiras nas TOs, por exemplo, na TO 126, que liga Tocantinópolis a Maurilândia, e também na TR 230, e também na antiga Transamazônica. Foram pontos estratégicos para conter o fluxo de indígenas na cidade.


Rituais culturais que envolviam aldeias estão suspensos, a exemplo da tradicional corrida de tora. / Mariane Pisani

A sua pesquisa avalia mudanças nos rituais tradicionais, na tentativa de evitar o contágio pelo vírus. O que foi preciso mudar?

Mudou toda a rotina de convivência. As festas culturais não foram mais praticadas. A única coisa que permaneceu foram as pinturas, mas como se estivesse de luto, se guardando como se não pudesse agir de outra forma. Foi um momento de muita tristeza e é até hoje, não temos muitas comemorações. Algumas aldeias começaram a celebrar casamentos esse ano, mas como a doença teve a entrada, e como hoje, nesse período, não temos casos ativos, começaram a fazer casamentos. A única festa cultural que começou, é a festa de casamento, mas sem aglomeração, só interno mesmo, então a mudança foi total.

Corridas de tora e outras festas culturais que eram para ter acontecido, não aconteceram. Estamos em obediência às regras do Ministério da Saúde, estamos obedecendo ainda todas as regras que foram propostas para nós, comunidades indígenas.

Isso traz um impacto para vocês, especialmente para os mais velhos. Você percebe algum sentimento de mudança, neles especialmente?

O que está acontecendo agora, é que as rodas de conversas estão acontecendo mais, as contações de histórias de antigamente.

Como parou, cada um nas suas aldeias, teve mais aproximação dos mais velhos. Às vezes não tinha mais esse diálogo com os novos, pela tecnologia, por muitas coisas que começaram a evoluir, e a nossa cultura acabou se modificando um pouco, mas nunca deixamos de praticar, de falar a nossa língua maternal, mantemos a nossa cultura muito viva, mas isso [a pandemia] fez com que não praticasse mais aquelas festas que reuniam toda a comunidade, todas as aldeias. Tem uma forma diferente, desse momento, com mais contações de histórias internas, sobre o passado.

Está sendo muito bom, mas por outro lado, não tem mais aquelas festas que a gente faz para reunir todo mundo, porque o Apinajé gosta muito de movimento, de se movimentar, ele não fica parado. Quando tinha festa cultural em uma aldeia, a gente reunia todo mundo, passava uma semana, quase um mês naquela aldeia.

Então foi modificada a nossa vida, mas estamos obedecendo, para não perdermos nenhum integrante da aldeia. Graças a Deus não teve nenhum que precisou sair da sua aldeia para a cidade.

O governo Bolsonaro pouco ou nada tem feito em defesa dos indígenas, mas percebemos um certo controle da doença nas aldeias. Isso é fruto dos trabalhos nas próprias aldeias, de cuidados um com o outro e uso dos saberes tradicionais?

Nós tivemos pouca ajuda, por exemplo, da Funai, não teve o seu papel, que era para estar todo mundo junto, ajudando nesse momento.

Por exemplo, cesta básica e outras coisas, como álcool em gel, teve distribuição, mas foi pouca. Não tem uma programação, não tem um plano emergencial da Funai, não tem um plano emergencial dos órgãos que são parceiros, então estamos sentindo falta desses parceiros.

Nós temos um grupo de lideranças que faz denúncias, por exemplo, ao Ministério Público, mas isso demora muito. Então o melhor que nós estamos fazendo, a nossa parte, é prevenindo, porque a doença não está dentro da aldeia, ela está na cidade.

Diminuir o fluxo de indígenas na cidade é muito importante. O Apinajé não tem muitos indígenas que moram dentro da cidade. Foi uma preocupação interna nossa mesmo, que se a gente não tivesse união, não tivesse escutado o não indígena, a doença talvez teria entrado rápido e talvez teria deixado muito estrago.

A gente não obedeceu de liberar as liberar, de deixar os profissionais da saúde trabalharem. Eles continuam trabalhando, medicos, dentistas, esses continuaram trabalhando, mas a barreira foi uma ideia nossa mesmo, porque já sofremos muito nesses retrocessos.

Eu me lembro de uma das anciãs que falou que a cidade, o homem branco, tem suas tecnologias para fazer vacinas, para conter, né, mas nós indígenas não, nós temos só nossas raízes. Talvez a doença do branco, o nosso Pajé não ia controlar, porque é uma doença que é desconhecida, porque quando é doença da aldeia mesmo, o Pajé cura, mas quando é doença do branco, o Pajé não vai curar. Essa anciã trouxe essa preocupação para nós, e fez com que os jovens se preocupassem com o nosso futuro. Foi uma ideia nossa mesmo, de estar prevenindo, as nossas raízes, a nossa cultura, os nossos ancestrais, porque se não fossem os nossos ancestrais, a gente nem estaria vivendo hoje, se prevenindo cada vez mais, fortalecendo, tendo resistência.

Até hoje temos duas barreiras ativas ainda, inclusive são de dois pesquisadores do Pari-c, que é uma da aldeia Prata, que fica na BR-230 e outra que fica na minha aldeia, na aldeia Botica, que fica no município de Maurilândia. Essas duas barreiras, a comunidade que ajuda mesmo, nós não temos ajuda dos gestores municipais, nem do governo estadual, nem federal. A gente está mantendo porque sabe o que já aconteceu, então a prevenção, nós mesmos estamos fazendo.


Barreiras sanitárias foram criadas pelos próprios indígenas, com o apoio dos Guardiões (Pēpkaàk). / Sheila Apinajé

A exemplo dos Guajajara, os Apinajés tem os Guardiões. De que maneira eles estão atuando nesse momento de pandemia?

Os guardiões são as pessoas escolhidas para ficar nas barreiras, são os que nós chamamos de Pēpkaàk, os guardas. Então os Pēpkaàk, antigamente, eram recrutados, como se fossem os policiais do Exército que vão se preparar para ficar em defesa daquela população. Nós temos os nossos Pēpkaàk, que hoje são os guardiões.

Eles que guardam, e também as mulheres, que são as guardiãs. Hoje, pelas histórias de antigamente, os jovens são recrutados para passar muito tempo na selva, aprendendo rituais, aprendendo a cultura, e tem o chefe deles, o Krãhtum, como se fosse o chefe e os filhos deles.

Os guardas, quando acontece qualquer coisa no nosso território, eles são escalados para estarem ali, guardando toda a população. A aldeia fica tranquila, para dormir em paz, sabendo que tem um grupo de guardiões guardando aquelas aldeias.

O projeto da plataforma Pari-c conseguiu reunir pesquisadores indígenas de diversas etnias, cada um com um tema diferente. Isso está ajudando também na troca de saberes entre vocês? Vocês conversam sobre as pesquisas?

Sim, a gente tem as notas de pesquisas, então quando a gente entra, se apresenta, a gente conhece cada história, tem os seminários, a gente conhece como eles agem em resposta à pandemia, cada população, por exemplo, tem várias pessoas que relatam casos de morte que eles não são velados na sua comunidade, são velados na cidade.

Mas nós temos um ritual muito forte de velório. Deus, que nós chamamos de Tirtũm, ele está guardando nós, para não haver morte, porque a gente tem o ritual de pintar o morto, de banhar, então se for morrer pela covid, não pode passar para o restante da comunidade, então graça a Deus, que já estamos passando por essa outra onda e ainda estamos guardando o conselho que os anciões repassam. Estamos obedientes.

Edição: José Eduardo Bernardes