Resistência

“Assumi minha negritude e vou lutar”, diz secretária de Saúde vítima de racismo em MT

Ozenira Félix, de Cuiabá, se arrepende de ter apagado mensagens e diz que despertou aos 55 anos: “Nunca é tarde”

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Secretária assumiu cargo em outubro de 2020 e diz que as desigualdades raciais no acesso à saúde são maiores do que imaginava - Davi Valle / Prefeitura de Cuiabá

“Não se define uma pessoa pela cor. Minha história é muito maior que isso.” O desabafo da secretária de saúde de Cuiabá (MT), Ozenira Félix, durante uma sessão da Câmara Municipal no último dia 27, reflete o sentimento de quem cansou de naturalizar o racismo.

Aos 55 anos, ela admite que até poucos meses não tinha afinidade com a pauta racial e ignorava a discriminação, como se não fosse problema seu.

Ozenira diz que o despertar está ligado diretamente à sua trajetória profissional. Primeiro, porque passou a assumir cargos cobiçados na gestão municipal, geralmente ocupados por homens brancos.

“A pandemia tornou a secretaria de Saúde ainda mais visada”, acrescenta.

O trabalho na pasta, a partir de outubro de 2020, também lhe permitiu encarar de frente problemas estruturais de uma sociedade racista.

“Eu despertei para esse problema social. Demorou demais, estou com 55 anos. Em outras épocas eu deixaria para lá e continuaria trabalhando. Só que, quando vi toda essa situação, as dificuldades da população negra no acesso ao Sistema Único de Saúde, isso mexeu comigo”, relata.

“No cargo que ocupo, nas condições que tenho hoje, socialmente, tenho muito mais formas de contribuir com essa população”, avalia a secretária. “E, naquele momento, eu achei que a melhor forma de contribuição era falar para a sociedade. Foi espontâneo, e choro até hoje quando me recordo.”

A semana do desabafo na Câmara Municipal foi a mais tensa desde que assumiu o cargo, em outubro de 2020. Vereadores denunciaram no dia 24 que havia remédios vencidos no Centro de Distribuição de Medicamentos e Insumos de Cuiabá, e a secretária foi chamada a prestar esclarecimentos.

Na madrugada anterior à sabatina, recebeu dezenas de mensagens racistas e não conseguiu dormir.

“Particularmente, não relação direta com o problema dos medicamentos vencidos, porque quando cheguei isso já estava em andamento. Coloquei uma equipe para apurar, mas essa situação se tornou pública, e virou uma comoção social”, descreve.

“Realmente, tem muito remédio vencido, é uma situação absurda”, acrescenta Ozenira.

Os ataques começaram no final de semana de 24 e 25 de abril, em paralelo às denúncias sobre os medicamentos. “Aí começaram mensagens bem pesadas no Instagram, já sobre a questão racial, sobre a minha capacidade, que pela minha cor eu não iria aguentar ver dinheiro, que eu iria desviar mesmo”, lembra.

Colocada contra a parede, ela decidiu quebrar o silêncio, publicamente, sobre o racismo.

Como mulher negra, Ozenira percebeu durante a pandemia que está no alvo: as cobranças são mais pesadas, as acusações ignoram os argumentos da defesa, e as insatisfações podem assumir a forma de injúria racial.

Foi assim, por exemplo, com as vacinas da covid-19. A secretária conta que foi pressionada a ampliar o alcance da primeira dose, porque “logo chegariam mais vacinas”, ou porque “o Bolsonaro mandou vacinar todo mundo.”

Hoje, Cuiabá é uma das poucas capitais brasileiras em que não faltaram segundas doses do imunizante.

A Secretaria Municipal de Saúde tem 102 unidades, com cerca de 8 mil profissionais.

“Assumi a secretaria em um momento bastante turbulento, depois do afastamento do secretário anterior. E essa pasta dá muita visibilidade, tem muita gente quer ocupar esse lugar”, relata Ozenira.

“Desde que assumi a pasta, começaram comentários nas redes sociais. Não era nada explícito, mas eu percebia que o que estava por trás era o racismo. Colocavam em dúvidas a minha capacidade, mas os argumentos nunca eram técnicos, sempre se referindo à minha figura”, completa.

Discriminação era parte da rotina

Graduada em Letras, com habilitação em língua inglesa, a secretária já trabalhou como professora de língua portuguesa e tem especialização em Teorias de Linguagem e em Didática Geral.

Antes de assumir o cargo na prefeitura, atuou como superintendente-adjunta de Gestão de Pessoas da Secretaria de Administração, superintendente-adjunta de Gestão de Pessoas da Secretaria de Saúde, diretora da Escola de Saúde Pública de Mato Grosso, servidora de carreira de Gestor Governamental de Mato Grosso e secretária-adjunta de Gestão de Pessoas da Secretaria Estadual de Administração.

Os primeiros passos na área de administrativa, como servidora estadual concursada, foram em 2011, durante o governo Blairo Maggi.

“Quando tinha uma reunião com o governador, todo mundo entrava na sala, fechava a porta, e depois alguém tinha que ir me buscar, do lado de fora. Eu era a única negra na história, e só autorizavam minha entrada depois que o governador perguntava por mim”, relembra Ozenira.

Últimas notícias da vacina: capitais suspendem aplicação da 2º dose devido à escassez

“Uma vez, eu estava conversando no celular e disse: 'Preciso desligar porque estou entrando no gabinete do governador’. Aí, um prefeito que estava ouvindo minha conversa comentou: ‘Meu Deus, uma preta achando que vai entrar no gabinete do governador! Para fazer limpeza?’ Na época, eu ignorei e entrei. Mas aquele sentimento fica”, diz.

Comportamentos discriminatórios eram parte da rotina. A lista de histórias semelhantes a essa parece não ter fim.

“Uma vez, um senhor entrou na minha sala, me viu e deu um passo atrás. Olhou a placa que dizia ‘secretária de administração’, depois olhou pra mim de novo, e só então entrou. Ele ficou desconcertado, mas depois se recompôs e disse: ‘Nossa, nunca imaginei uma... mulher nessa pasta’.”

Ozenira Félix nunca denunciou esses casos e procurava minimizá-los.

“A gente vai contemporizando, quando na verdade temos que cair na real que somos uma sociedade racista, e isso não mudou. Dessa vez, acho que doeu mais porque eu estou mais consciente devido ao trabalho na secretaria”, avalia.

“Por exemplo, antes eu nem sabia que tinha comunidades quilombolas dentro de Cuiabá. Temos um trabalho de vacinação de moradores de rua, e isso me trouxe consciência da quantidade de negros na rua, muito maior do que brancos. Isso é que mexeu comigo”, acrescenta, às lágrimas.

A pandemia escancarou as desigualdades. “A gente vê que quem tem carro vem primeiro se vacinar, porque tem mais acesso à tecnologia. Então, andei toda a zona rural de Cuiabá, onde a população negra é muito grande, para vacinar as pessoas em casa, para que eles não tivessem que vir pra cidade”.

Arrependimento por mensagens apagadas

Desde outubro, a secretária precisou deixar de lado seu costume de não abrir as redes sociais. Desde que as primeiras vacinas foram aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Social (Anvisa), as dúvidas e reclamações se multiplicaram.

“Passei a senha para meu esposo, minha filha, minha equipe, para todo mundo ir respondendo às dúvidas. Criamos até umas respostas-padrão nas redes sociais, em nome da secretaria, para fazer os esclarecimentos”, conta.

Quando as mensagens “mais explícitas” começaram a chegar pela internet, Ozenira mudou a senha, porque não queria que a filha lesse os comentários. Em seguida, localizou as mensagens mais pesadas e começou a apagá-las.

“Elas vinham de 4 ou 5 perfis que tinham como origem os Estados Unidos. Aparecia a foto da pessoa, estava escrito USA, com a bandeirinha. Aí, quando você entra no perfil, tem só uma foto ou um post, e mais nada. De repente é um [usuário], que transformou em vários perfis para fazer os ataques”, especula a secretária.

O maior arrependimento de Ozenira é não ter “printado” as mensagens e comentários racistas, nem aberto um boletim de ocorrência para registrar os crimes. É o que ela pretende fazer, caso as injúrias continuem.

“Assumi minha negritude e vou lutar. Nunca é tarde para isso”, finaliza.

Mato Grosso lidera o ranking de registros de casos de injúria racial proporcional ao número de habitantes, segundo a 14° edição do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre 2018 e 2019, houve um aumento de 15% nas ocorrências.

Edição: Leandro Melito