A covid-19 deu origem a muitos desafios. O principal talvez seja encontrar uma solução para a distribuição global de vacinas.
A partir da perspectiva dos direitos humanos, significa como levar a vacina contra a covid-19 às comunidades e pessoas nos países em desenvolvimento rapidamente, em segurança, com pouco ou nenhum custo, e sem discriminação política, de classe ou de gênero.
Para tratar sobre o tema, a Amigos da Terra Internacional e o Instituto Transnacional lançaram o relatório COVAX, um organismo global multi-stakeholder que pode levar riscos à saúde e políticas aos países em desenvolvimento e ao multilateralismo. O trabalho foca nas implicações políticas e econômicas para o Sul global e na forma como a covid-19 e a estrutura dessa entidade global de múltiplas partes interessadas, a Covax, está conduzindo a uma transformação da governança global.
As entidades afirmam que para grandes empresas e entidades como o Fórum Econômico Mundial (WEF) ou a Fundação Gates, o desafio é como levar a vacina contra a covid-19 às comunidades e à população dos países em desenvolvimento sem perturbar o mercado farmacêutico global, por meio de um mecanismo que passa por cima dos sistemas de emergência humanitária multilateral, ao mesmo tempo que direciona as vacinas para parceiros preferenciais no mundo em desenvolvimento.
O relatório alerta que o regime desta governança multiparticipativa baseia-se na premissa de marginalizar os governos, inserindo os interesses corporativos das transnacionais diretamente no processo global de tomada de decisões e ignorando a responsabilidade delas. “Não existem normas de responsabilidade ou de prestação de contas para as entidades globais de múltiplas partes interessadas. A multiplicidade de organismos estratificados ‘supervisionando’ o programa de múltiplos intervenientes da Covax torna extremamente difícil saber quem tem mesmo obrigações morais, embora a Covax tome as decisões mais importantes para as vidas de centenas de milhões de pessoas”, consta no relatório.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a coordenadora do Programa de Justiça Econômica e Resistência ao Neoliberalismo da Amigos da Terra Internacional e co-editora do relatório, Letícia Paranhos de Oliveira, afirma que como todo órgão de múltiplas partes interessadas, existem partes reais e partes ignoradas.
“No caso da Covax, a Fundação de Bill Gates e outros setores que representam as empresas transnacionais e os setores farmacêuticos são as partes reais e que de fato estão gestionando a entidade, desviando os fundos públicos que são oriundos (78%) de governos para interesses capitalistas. Enquanto que nas partes ignoradas figura a Organização Mundial da Saúde que, de fato, não tem voz nem poder de decisão", avalia Oliveira.
Confira a íntegra da entrevista com a co-editora Letícia Paranhos de Oliveira e com o editor Gonzalo Berrón.
Brasil de Fato: Como funciona uma entidade de múltiplas partes interessadas?
Letícia Paranhos: Nós buscamos uma tradução para uma palavra que vem do inglês, que já vem ganhando fama e espaço no contexto internacional: a multistakeholders. Alguns chamam também de multilateralismo privado na governança global. Mas para as pessoas entenderem de fato o que significa é a captura corporativa nos espaços de decisão, que nós estamos acostumados a lutar diariamente em todas as esferas da micropolítica, nos espaços de governança global. Essa tem sido uma batalha que a gente trava muito fortemente.
Quando a gente fala que o capital não faz quarentena, fica muito explícito quando vemos que o setor que mais lucrou durante a pandemia foi da saúde. Apesar de a gente entender que a saúde é um direito e não uma mercadoria, seguem sendo alguns poucos milionários os que mais lucraram.
Gonzalo Berrón: O Covax não é mais do que uma outra entidade internacional, como nós chamamos de múltiplas partes interessadas. Ao invés de inventar ou de criar um órgão internacional chefiado por estados ou entidades internacionais que nem a Organização Mundial da Saúde (OMS) ou outras parecidas, a proposta da Fundação Gates, sobretudo, foi criar uma entidade encarregada de distribuir vacinas no mundo, que seja múltiplas partes interessadas.
Isso quer dizer com agentes financeiros e econômicos privados, entidades filantrópicas privadas como a Fundação Bill e Melinda Gates, tomando parte das decisões sobre um problema que é um problema de saúde global. Esse é o principal problema.
O principal problema a isso não é que setores privados ou entidades financeiras possam participar da solução, o problema é que eles são colocados em um nível em que eles decidem, e quando eles decidem, ao invés de apontar para o princípio da saúde pública, ou seja, do interesse geral, eles sempre acabam promovendo soluções que favorecem em última instância os agentes do mercado. E o Covax é um perfeito exemplo disso.
Como as decisões da Covax afetam as populações dos países que necessitam das vacinas?
Letícia - Nós sabemos que a pandemia da covid-19 se tornou uma grande oportunidade de negócios, especialmente para a indústria farmacêutica. E a Covax é justamente essa entidade de múltiplas partes interessadas para oficiar como um braço de distribuição de vacinas de outro órgão que também funciona da mesma maneira, de múltiplas partes interessadas que é o acelerador de acesso a ferramentas contra a covid. A sua função é manejar o financiamento pra comprar as vacinas contra a covid, e outros subcomponentes relacionados com diagnósticos, terapias, apoio a sistemas de saúde nacional.
Mas o Covax se converte num órgão de tomada de decisão de setores industriais da medicina, onde empresas desses setores obtêm grandes contratos, por exemplo, essas empresas têm direito de convidar para a diretoria do Covax e também a seus comitês assessores. A governança da democracia da instituição do Covax não é mais da Organização Mundial da Saúde. A OMS é substituída pela Covax que harmoniza os interesses do mercado financeiro e prioriza os interesses do mercado ao invés de priorizar os interesses da saúde pública. Isso é a Covax.
Tem um ditado popular que diz: o pastor, o lobo e a ovelha se sentam pra discutir como que o lobo vai comer a ovelha. Mas no caso da Covax, como basicamente é inexistente o papel da sociedade civil dentro da organização, inclusive do próprio Estado, o lobo está agenciando, está decidindo como vai comer a ovelha de fato. É basicamente isso a Covax. E a OMS apesar de figurar e de ser propagandeado que a OMS participa, ela não tem um cargo de diretoria dentro da Covax.
O financiamento da Covax vem 78% de países que poderiam estar disponibilizando recursos pra OMS, dá pra salientar bem fortemente esse dado. Mas não, estão disponibilizando para um órgão de múltiplas partes interessadas, e são 5 países principais, Canadá, Comissão Europeia, Alemanha, França e Arábia Saudita. E o resto é 13% de fundações, 1,2% de grandes empresas e 0,3% de órgãos sem fins lucrativos. Apesar disso, os Estados dos países não têm papel de liderar as decisões sobre a Covax.
E agora, sabe quem são os líderes da Covax? Quem toma as decisões, quem faz parte, quem fundou a Covax? A aliança mundial para vacinas e imunização, uma sigla do inglês que é GAVI, a coalizão para inovações na preparação para futuras epidemias, que na sigla inglês é CEPI, essas duas são entidades público-privadas, e múltiplas partes interessadas têm estreitos vínculos ao Fórum Econômico Mundial e à Fundação Bill e Melinda Gates. E foram fundadas em Davos, no marco do Fórum Econômico Mundial. Em 2017 já discutiam a necessidade de criar um plano para solucionar epidemias futuras.
Dentro das múltiplas partes interessadas, existem partes reais e partes ignoradas. Justamente nos altos níveis da Covax têm os membros da GAVI, os membros da CEPI e tem apenas um membro de alto nível da UNICEF. Além dos maiores interessados, um representante da indústria da Federação Internacional da Indústria de Medicamentos, um membro da rede de fabricantes de vacinas dos países em desenvolvimento, uma cadeira apenas da sociedade civil, que é do Comitê Internacional de Resgate. Falta representante de governo, principalmente dos países beneficiários, falta representantes de pacientes, representantes de atenção à saúde, faltam cientistas especializados em medicina, faltam movimentos sociais, faltam representantes de povos, principalmente dos mais afetados pela covid. O que estamos alertando é que é uma grande tomada do controle e cooptação empresarial do espaço de governança global.
Gonzalo: O grande problema no caso das vacinas é que os estados e os laboratórios, sobretudo os estados poderosos, fizeram uma aliança econômica, política, para garantir para as suas populações vacinas. Então eles investiram pesado nos laboratórios deles, para garantir a produção de vacinas para suas próprias populações. Obviamente eles ganharam a maior parte das vacinas e sobraram algumas migalhas para os que têm menos poder financeiro, econômico.
Por isso que você vai ver que toda hora tem um cancelamento de um envio de vacina pro Brasil, pro Peru, pra Argentina, de um e outro laboratório. Esse foi o principal problema. O Covax tentou entrar nessa jogada e tentou regular esse mercado através de grandes compras, só que chegou tarde, porque as grandes compras já tinham sido feitas pelos estados. Então é como se fosse um mercado residual que é por sinal mais da metade da população no mundo, ficou as migalhas das vacinas que sobraram, ficaram para ser distribuídas supostamente pelo Covax, só que afinal como não tem o mesmo poder que tem as outras entidades dos países, acaba não dando certo.
Existe alguma forma da sociedade civil supervisionar as ações desse organismo?
Letícia : Então, essa reunião de coordenação da Covax é copresidida pela presidência da CEPI e pelo diretório da GAVI. A OMS é um integrante, participa da reunião de coordenação da Covax. O próprio presidente da Assembleia Mundial da Saúde não tem nenhum cargo diretivo da reunião de coordenação do Covax. E os fundos públicos mais em versão privada vão pro mercado mundial da saúde, mas não atende o interesse de saúde pública, mas sim um interesse capitalista.
É muito interessante perceber que dentro dos financiadores, no estudo que conseguimos mapear, tem um meio de comunicação que é a TikTok, e aí a gente se pergunta: por que a TikTok tá interessada em financiar a Covax? E o que os meios de comunicação no geral estão comentando e estão trabalhando pra dizer o que a Covax representa? O que eles estão midiatizando sobre a Covax, de que ela é a melhor solução pra garantir a equidade na distribuição das vacinas, como se as empresas pudessem garantir uma distribuição equitativa, sem discriminação de classe, de gênero, de raça, como se fosse realmente uma verdadeira solução.
Não querem falar sobre quebra de patentes, não querem falar sobre propriedade intelectual, não querem falar que estão beneficiando algumas empresas. Eles querem falar que estão salvando as pessoas do Sul global contra o vírus da covid. Por isso que estão colocando dinheiro nesse financiamento, porque estão em busca de um slogan, de um marketing de responsabilidade social corporativa. Tão em busca daquilo que sempre estiveram, aproveitando uma crise pra limpar a sua imagem.
O Bill Gates mesmo já está há mais de 20 anos metido nesse tema das epidemias futuras, das vacinas, e há muito tempo ele também figura como um protagonista não só na sua própria organização, que é a aliança internacional pra vacinas e imunização, mas também se estabelece na vanguarda de estabelecer entidades de múltiplas partes interessadas. Ele tem interesse de estar à frente dessa cooptação também do imaginário de que as empresas transnacionais que estão no nervo central do sistema capitalista, elas não são a causa das nossas múltiplas crises sistêmicas, mas ao contrário, elas são as soluções das crises sistêmicas.
Eles trabalham para demonstrar que as Nações Unidas estão fracassando para enfrentar todas as crises globais, e de que quem tem a solução são as empresas transnacionais. Enquanto a gente luta, trabalha arduamente nos movimentos sociais, para demonstrar que as soluções para as crises sistêmicas é justamente desmercantilizar a vida e a política. É uma disputa do imaginário, é uma disputa com os meios de comunicação, é uma disputa na arena política, pela democracia.
A gente entende que o risco da Covax é sanitário sim, mas é também político, porque faz avançar essa estratégia de colocar o multilateralismo privado controlando e tomando as decisões sobre as nossas vidas, sobre a vida dos povos em relação às questões tão prioritárias como a saúde, sem a gente poder tomar parte disso, sem a gente ter voz, sem termos se quer conhecimento sobre o que está acontecendo, sem instâncias democráticas e de forma autoritária e arbitrária. Isso também é um risco principal da Covax.
Gonzalo: Na verdade, não existem mecanismos formais para monitorar as ações da Covax, porque como eu falei, é uma entidade semiprivada. Ou seja, ninguém monitora isso e a sociedade civil não faz parte como em muitos dos órgãos internacionais, como a OMS e alguns desses outros órgãos que têm a participação obrigatória da sociedade civil, a Covax não tem. Tem alguns representantes sim, das universidades, da pesquisa, vamos dizer, mas ninguém monitora. O monitoramento cabe à sociedade civil se organizar para fazer, e até agora só alguns poucos, como o movimento dos povos pela saúde, o Pieten ou o Pisai que têm feito algum monitoramento da Covax.
Qual seria a melhor maneira de garantir que todo mundo tenha acesso às vacinas? Qual a opinião da campanha Liberem as Patentes?
Letícia: É lógico que a Covax reduz as respostas de necessidade de atenção à saúde, a capacidade de compra da vacina a seus proprietários entendidos pela própria Covax como legítimo. Como acreditamos que a saúde é um direito e não uma mercadoria, somos sempre contrários a propriedade intelectual e favoráveis a quebra das patentes e a quebra dos direitos de propriedade intelectual.
Nesse momento existe uma proposta no âmbito da organização mundial do comércio vinda pelos países da Índia e da África do Sul, de suspender os direitos de propriedade intelectual de maneira temporária enquanto vivemos a pandemia. É extremamente importante que todos os países apoiem essa proposta, porque as patentes dão às transnacionais farmacêuticas o poder de determinar quais países recebem ou não as vacinas. Então com a quebra das patentes muitos outros laboratórios poderiam produzir vacinas, aumentando a disponibilidade desse insumo tão fundamental para evitar mortes em nível global.
Desde a perspectiva dos direitos humanos, a estrutura para coordenar a distribuição de um bem mundial deveria incluir os governos dos países receptores, representantes de organizações, profissionais desses países, representantes de movimentos sociais, e também os povos beneficiários. Demais órgãos intergovernamentais chaves e relevantes e, principalmente, deveria estar garantida uma distância segura de interesses comerciais para que não passasse algo que está passando com a Covax. Ou seja, fundos públicos e mesmo investimentos privados, se convertesse a atender interesses capitalistas em prejuízo da saúde pública. Então essa é a nossa máxima.
Gonzalo: A sociedade civil, e sobretudo os do Sul global, dos países em desenvolvimento, todos brigamos. Por exemplo, aqui no Brasil tem o GTPI da Rebrip, tem uma rede latino-americana de acesso a medicamentos e tem várias redes internacionais, que brigam pelos acessos aos medicamentos, e em particular esse acesso seria as vacinas. Isso se garantiu de duas formas, primeiro com a quebra das patentes, ou uma campanha que se chama Weiver, ou seja, uma suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual sobre as patentes no contexto da Organização Mundial do Comércio, para atender a emergência.
Uma coisa que por outro lado parece super razoável, mas não é, porque tem claro os interesses das farmacêuticas ali no meio, por exemplo, o próprio Bill Gates numa das últimas declarações chegou a dizer que era contra a quebra de patentes, porque obviamente a própria indústria dele se sustenta no direito de propriedade intelectual. Essa é uma dimensão, a outra dimensão é que o sistema de governo internacional, ou seja, o multilateralismo, os organismos pertencentes ao multilateralismo como a OMC, eles mesmos decidem as políticas e o investimento, e as decisões sobre investimentos, sobretudo público, é para a melhor produção e distribuição de medicamentos e em particular da vacina para combater essa que é indubitavelmente um problema de saúde de caráter global e por isso é que tem que ser tratado por entidades internacionais, mas comandadas por estados, não por companhias farmacêuticas que procuram o lucro.
Como podemos garantir o direito à saúde, a soberania sanitária, sem o controle de empresas transnacionais na governança dos sistemas de saúde mundiais?
Gonzalo: Uma das coisas que a gente briga, inclusive com os companheiros do GTPI da Rebrip, que tem sido muito atuante agora nessa briga aqui no Brasil, é que você tem que garantir o direito à saúde, acima do direito ao lucro, obviamente. Parece uma coisa tão simples, mas muitas vezes não é assim que acontece. Então para nós, obviamente, o direito da saúde é um dos direitos humanos primordiais, e nós consideramos isso na luta por um tratado.
Não sobre empresas e direitos humanos, nós chamamos sempre de direitos humanos empresas que é o que está sendo negociado nesse momento na ONU, e onde nós colocamos que o direito à saúde deve ser colocado acima dos direitos das empresas, nesse caso a farmacêutica. E nós achamos que temos ali junto com o acesso a outros direitos humanos a chance de ter o direito à saúde garantido de forma mais completa e abrangente.
Obviamente nós entendemos também que o conhecimento, mesmo que sendo em alguns casos protegido, como o caso dos conhecimentos ancestrais dos indígenas e tal, são comuns e não devem ser, claro, produtos de políticas de negócios e lucros para as empresas. Sobretudo quando se trata de saúde pública e avanços, por exemplo, para a questão climática, e a defesa do planeta. #DireitosParaosPovosRegrasParaasEmpresas
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira