A permanente preocupação de movimentos populares com o travamento da reforma agrária no país ganhou um novo ingrediente neste primeiro semestre do ano. Entidades do segmento temem que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 769, que pede a retomada da política, não seja julgada no Supremo Tribunal Federal (STF) antes da aposentadoria do relator, ministro Marco Aurélio Mello.
Atuando na Corte há mais de 30 anos, o magistrado deve deixar o cargo em menos de 60 dias, pouco antes de completar 75 anos, quando se dá a aposentadoria compulsória. A saída de Marco Aurélio resultará, inevitavelmente, na indicação de um magistrado por parte do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), cujo governo é avesso à política de reforma agrária.
“Com o ministro saindo, a gente não sabe o que vai acontecer. Ao se passar o processo para outro, certamente isso demoraria muito mais tempo ou aconteceria até um arquivamento. Isso nos preocupa, e preocupa todas as nossas comunidades, os agricultores que estão produzindo e os que estão acampados esperando essas terras”, desabafa Lázaro de Sousa Bento, da Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf).
A entidade é uma das signatárias da ADPF, ajuizada no final de 2020, em associação com cinco partidos de oposição – PT, PSB, PSOL, PCdoB e Rede – e ainda com a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag).
A ação pede que o STF anule e considere inconstitucionais três atos administrativos assinados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2019 que obstruem a política agrária, cuja asfixia vem sendo reforçada na gestão Bolsonaro.
Também solicita que o órgão providencie a “imissão na posse” [um tipo de ato judicial] de 187 processos distributivos que dependem apenas disso para que haja a desapropriação do terreno, por já terem tido as despesas pagas.
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Investimentos
O pleito dos partidos e movimentos demanda ainda a recomposição do orçamento projetado para a política, cujas ações sofreram cortes de mais de 90% entre 2020 e 2021, considerando as previsões do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de cada ano.
A tesoura do governo atingiu também outras ações do Incra que têm conexão com a reforma, como assistência técnica, monitoramento de conflitos agrários, promoção da educação do campo e concessão de créditos para famílias assentadas, estas com reduções de mais de 82% nos investimentos estatais.
É em meio a esse cenário que os autores da ADPF 769 cobram ainda do órgão federal a elaboração de um plano nacional de reforma agrária, entre outras medidas. O Incra é vinculado ao Ministério da Agricultura (Mapa), hoje comandado pela ruralista Tereza Cristina.
“O Artigo 188 da Constituição estabelece taxativamente que as terras públicas e devolutas deverão ser compatibilizadas com a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária. O Incra sequer tem um plano nacional, e também não tem destinado as áreas reconhecidas – inclusive por decisões judiciais ou registros cartoriais – à reforma agrária”, aponta o advogado Diego Vedovatto, um dos representantes da Movimento dos Trabalhadores Rurais em Terra (MST) no processo.
No último dia 29, uma manifestação do procurador-geral da República no âmbito da ação pediu o arquivamento do processo. Augusto Aras alegou problemas formais no documento e disse ainda que “formulação, implementação e gestão” da política de reforma são atribuições exclusivas dos Poderes Executivo e Legislativo, o que afastaria a possibilidade de interferência do Judiciário, inclusive na questão orçamentária.
O argumento é rebatido por Vedovatto, para quem a PGR resumiu os pedidos das entidades e fez uma manifestação “genérica”: “Há apenas um pedido relacionado ao orçamento na ADPF, que é pra que o STF obrigue o Incra a executar todo o recurso disponível para a reforma. É óbvio que uma política pública tão importante como essa não é feita sem verbas. E, como ela é um direito constitucional, não pode o Executivo ou o Congresso simplesmente acabarem com o seu orçamento”.
Vistorias
O abandono da pauta por parte da gestão Bolsonaro está expresso em diferentes medidas administrativas. A principal delas é o Memorando N º 01, de março de 2019, do Incra. Direcionado às superintendências regionais do órgão, o documento determinou a suspensão das vistorias em imóveis rurais relacionadas à reforma agrária.
Segundo expresso no memorando, a alegação para a medida é de “insuficiência de recursos orçamentários”. A ideia seria evitar “expectativa de compromissos que não poderão ser cumpridos”.
A paralisação de vistorias afeta sobremaneira os trâmites da política de reforma agrária. É que a iniciativa é o primeiro passo dos processos de desapropriação, nos quais o estado precisa fiscalizar o cumprimento da função social da terra nas áreas rurais.
Na ADPF 769, os signatários destacam que a decisão anunciada no Memorando 01/2019 se tornou permanente, acarretando o travamento de 413 processos de desapropriação e aquisição de terra. O dado foi revelado pelo próprio Incra em uma comunicação enviada em outubro ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
“Por isso também estamos tentando adiantar esse processo o mais rápido possível ou pelo menos marcar uma audiência [com o STF] pra ter uma primeira conversa sobre o tema”, diz Lázaro de Sousa Bento.
Constituição
Um dos assuntos de destaque na Constituinte de 1987/1988, a reforma agrária tem lugar nos artigos 184 a 191 da Carta Magna, que trata da política agrícola e fundiária. A medida se baseia essencialmente em atribuir à União a obrigação de desapropriar imóveis rurais que não cumpram sua função social para que eles sejam repassados a famílias de agricultores cujas atividades atendam a esse fim.
Disso depende a criação dos chamados “assentamentos”, unidades agrícolas instaladas pelo Incra que são entregues a famílias camponesas sem condições financeiras de comprar um imóvel rural. Os lotes não podem ser vendidos, alugados ou emprestados.
Em troca, os agricultores devem explorar a terra para o seu sustento e utilizar mão de obra familiar. O trabalho costuma ser voltado essencialmente à produção de alimentos, considerada fundamental para garantir a segurança alimentar e evitar desabastecimento no país.
“É uma pauta que está sendo cada dia mais precarizada, e é uma questão prioritária. Como é que você tem alimento pra alimentar uma nação se você não tem terra pra plantá-lo? Tudo começa pela terra”, realça a secretária agrária nacional do PT, Elisângela dos Santos.
A atividade também ataca a concentração fundiária, um problema centenário no Brasil, onde 1% dos imóveis rurais detém mais de 47% das áreas do campo. O dado é do Censo Agropecuário de 2017, coordenado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Cabe ao Estado, nesse contexto, implementar políticas públicas que colaborem com o processo de reforma agrária. É o caso da assistência técnica e das medidas de contratação de crédito rural, entre outros. Essas ações se baseiam na tentativa de efetivação do interesse social relacionado ao tema.
Na prática, no entanto, a política tem enfrentado historicamente uma série de entraves no âmbito estatal, vivendo ao sabor da cartilha econômica e ideológica dos governos de plantão. Redução de verbas, violência contra lideranças e comunidades, despejos e chacinas estão entre os elementos que fazem parte do cenário do campo brasileiro.
Desidratação
A dirigente Antonia Ivoneide, conhecida como Neném, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), ressalta que a desidratação da política vem se agravando desde 2015. O resgate remonta a um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) que suspendeu, naquele ano, a entrada de novos cadastros na fila da reforma agrária.
Como resultado, de lá pra cá, a aliança entre as consequências do acórdão e a agenda adotada nos governos fez o número de famílias assentadas cair de 26,3 mil, em 2015, para 3,8 mil, em 2020. É o que mostra uma nota técnica enviada pelo Incra ao STF em fevereiro deste ano.
No texto, ao citar diferentes valores previstos na LOA e a execução orçamentária de ações na área, o órgão diz que fica “demonstrada” a ausência de paralisação da reforma agrária e pede que os ministros julguem a ADPF 769 como improcedente.
Considerando todo o período de gestão e olhando para o retrovisor, o governo Bolsonaro (2018-) assentou 9.228 famílias, contra 11.831 do intervalo do governo Temer (2016-2018), além de 133,6 mil no governo Dilma (2011-2016) e mais de 540 mil na gestão Lula (2003-2010).
“Tudo isso a gente percebe que tem a ver com o avanço do agronegócio e, acima de tudo, com a tentativa de barrar qualquer processo de reforma agrária. É tempo também em que aumentam a violência no campo, os processos de despejo, e a Justiça passa a dar, com mais frequência e sem muita análise, os pedidos de despejo nos assentamentos e acampamentos”, resume Neném.
A regressão nos números de famílias assentadas tem servido de catalisador para uma série de protestos populares que cobram a execução da política à gestão Bolsonaro. “E nós não vamos desistir. A questão agrária sempre viveu um embate muito grande. Tem havido frequentemente uma pauta de retrocessos e lutaremos para que este pedido de agora da ADPF não seja esquecido”, encerra Elisângela dos Santos.
Edição: Vinícius Segalla