Homenagem

Alfredo Bosi: Militante da poesia e da política

Há um mês, país perdia para a covid-19 um dos maiores pensadores da cultura e da sociedade brasileiras

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Ao longo de sua trajetória, Bosi se pautou pelo diálogo como prática - Acervo CSBH/FPA
Nós somos estragados pelo excesso daquilo que nós não compreendemos.

Em 31 de dezembro de 1970, o intelectual Otto Maria Carpeaux, escreveu uma carta ao critico e historiador Alfredo Bosi, em agradecimento à uma citação no livro História Concisa da Literatura Brasileira. Na mensagem, Carpeaux relata "grande alegria" por estar na obra, "No fim de um ano que certamente não foi dos melhores das nossas vidas", completa.

É impossível não conectar a caracterização do período com o momento atual, ainda mais após a perda do professor Bosi, morto por covid-19 há cerca de um mês. As palavras de Carpeaux dão a dimensão do que a figura do historiador já representava, e representa ainda mais atualmente, para a formação do pensamento brasileiro e para a militância.

Alfredo Bosi nasceu em São Paulo, no ano de 1936. Estudou letras na Universidade de São Paulo (USP) a partir da década de 1950 e, durante toda a sua trajetória, se manteve ligado à instituição. Definido como um "intelectual pleno, de esquerda e de ação", ele levou à academia uma maneira rara de atuar, resumida nas palavras do amigo e ex-aluno, Augusto Massi, como "viva".

"Ele é um professor militante, não é só um professor, é um professor militante. Mas um militante da poesia e da política. O que eu acho que é bonito, é que ele não é uma pessoa excludente, ele é uma pessoa inclusiva. À medida que ele foi se desenvolvendo como intelectual, ele foi incluindo categorias. Ele atuou como um homem de mediação, é um lugar especial dele", relata Massi. 

Massi é um dos organizadores do livro Reflexão como Resistência, uma homenagem a Alfredo Bosi. A obra reuniu também  Erwin Torralbo Gimenez, Marcus Vinicius Mazzari e Murilo Marcondes de Moura e traz escritos de mais de trinta autores, cartas, ensaios e reflexões do intelectual.

Ele conta que o professor não se limitava a analisar uma obra apenas pelo aspecto de ação prática e considerava essencial levar em consideração a individualidade dos autores. Na leitura de Bosi, havia respeito à singularidade dos artistas, "Você não pode transformar aquilo num instrumento de militância, transformar aquilo em algo mecânico. A ação não pode inibir a reflexão e nem a criação. Ele era cuidadoso em preservar uma integridade, uma busca de uma obra total". 

Segundo Massi, cada uma das funções que Bosi desempenhava tinham valores dessa natureza na essência. Fruto de uma período embrionário de democratização da USP, fazia questão de dar aula para os alunos dos períodos iniciais e tinha uma "capacidade fina" de reflexão, que por muitas vezes emocionava o professor durante as aulas. "Está introjetado no projeto dele continuar com a preocupação inicial didática de formação".

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Como historiador e crítico, Bosi se tornou um pensador com profunda capacidade de síntese. O objetivo era chegar à totalidade da cultura e a possibilidades de abertura de vias de resistência. Ele enxergava na poesia um canal de resposta às opressões. "A poesia atua como uma espécie de antídoto à ideologia. Ele é um homem da cultura, um homem da história, mas no centro está a poesia", enfatiza Massi.

A formação e atuação acadêmica de Bosi foram essenciais para forjar o militante que tinha o apego ao diálogo como característica inata. 

"Sendo ele um homem muito erudito, um homem muito culto, ele conseguiu ser muito democrático, o saber dele não era opressivo, era alguém que conseguia conversar com as pessoas. Ele era capaz de ter uma atitude muito sofisticada do ponto de vista humano. Ele tinha uma atenção ao outro, que permitia a ele ouvir desde as comunidades de base e dar aula para operários à aula na Universidade de São Paulo, que é uma universidade pública", destaca.

Em 2015, durante uma palestra na Escola das Cidades, o professor citou preocupação com a desigualdade no acesso à cultura, "As noções de centro e periferia têm envenenado muito a cultura, porque são noções muito drásticas".

No encontro (assista aqui) Bosi apontou que "Muitas pessoas, ainda hoje, consideram cultura como algo que se obtém, como se obtém uma mercadoria. Essa visão dissocia a cultura de uma vida democrática. Em uma vida democrática não deve haver uma separação tão drástica entre os que podem e os que não podem", afirmou. 

Para o professor, existe um "grande descompasso" entre o avanço da tecnologia, da ciência e da extrema especialização e o conhecimento das pessoas, o que aumenta o abismo no acesso. Bosi aponta essa realidade como característica forte da divisão cultural.

"Poderia falar do ipad ou do smartphone, essa coisa espantosa quando você procura uma informação, seja um verso de (Francesco) Petrarca, seja o que está passando no cinema ao lado - eu posso imediatamente saber. É uma coisa absolutamente espantosa, eu nunca deixo de me admirar", ressaltou.

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A reflexão sobre o cenário representa uma espécie de redenção, "Espero que não chegue um dia a ficar tão entorpecido que eu ache natural. Que até fique irritado quando o computador está lento. Dentro de nós está se criando o que eu chamaria do bárbaro civilizado. Civilizado porque desfruta de todos esses bens e, ao mesmo tempo, um bárbaro porque ele não entende e não sabe".

Bosi assume que não é possível para os indivíduos saber tudo sobre todos os mecanismos que permeiam o cotidiano. A dinâmica seria um mal necessário. Ainda assim, ele reflete, "se é necessário, nem por isso deixa de ser um mal. Com isso, nós nos transformamos realmente em usuários, até viciados. Nós somos estragados pelo excesso daquilo que nós não compreendemos".

::A versão em áudio desta matéria foi sonorizada com a canção "Espero que nomes consigam tocar", que reuniu Chico César, Bráulio Bessa, Neymar Dias, Coro de Câmara Comunicantus e Coral da ECA/USP em uma homenagem às vítimas da covid-19. O reconhecimento do plural na cultura era considerado fundamental por Bosi.::

Edição: Daniel Lamir e Morillo Carvalho