Com apoio do Ministério da Agricultura, as principais entidades do setor agreopecuário do país lançararam a campanha “Agro Fraterno” na última quarta-feira (12).
A iniciativa liderada pelo Sistema CNA, pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e pelo Instituto Pensar Agro (IPA) objetiva “arrecadar alimentos para os mais necessitados” em meio à pandemia.
Segundo o Canal Rural, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, ressaltou durante o evento de lançamento que “o agro não parou na pandemia” com a ajuda do governo federal.
“Estamos preocupados com as pessoas em situação de vulnerabilidade. Diante deste cenário, surgiu a ideia de fazer um programa do Agro que possa contribuir com a segurança alimentar do Brasil”, disse a ministra.
Ainda que o discurso entregue certo ar de solidariedade, a farsa da campanha é flagrante, segundo Kelli Mafort, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
A começar pelo fato de que a “Agro Fraterno” foi criada somente após mais de um ano de uma pandemia que ceifou 430 mil vidas e consolidou o brutal retorno da fome aos lares brasileiros.
“Isso é uma mentira. O que o agronegócio quer é marketing político em cima da fome que ele próprio gera. É preciso dizer que o agronegócio provoca a fome. As 3 ou 4 culturas do agronegócio, como soja, cana de açúcar, produção de eucalipto pinus para celulose", aponta Mafort.
"São commodities agrícolas voltadas para a exportação e que avançam sobre a agricultura familiar, territórios camponeses e áreas de produção de alimentos”.
A expansão agrícola e mineral que avança sobre as “áreas de comida” também são responsáveis pelo aumento do preço dos produtos nas prateleiras.
Isso porque, conforme a dirigente explica, além de produzir commodities para exportação, o agronegócio se apropria dessa produção da agricultura familiar por meio das etapas de processamentos e distribuição.
A Camil, dona de várias marcas de arroz e feijão, é um exemplo de empresa que se favoreceu durante a pandemia.
“A Camil não planta um único pé de arroz e feijão. No entanto, se apropria da produção da agricultura familiar, empacota, processa, coloca na agroindústria e vende. Com a alta do preço do dólar e desvalorização cambial, está interessada em receber em dólar", detalha Mafort.
"Prefere vender pra fora e receber em dólar, fazendo com que o mercado brasileiro tenha que enfrentar altas sucessivas no preço dos alimentos”.
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A coordenadora do MST cita ainda que é também o agronegócio, representado pelas empresas que comandam a “Agro Fraterno”, o responsável pelo desmatamento e uso intenso de agrotóxicos que prejudicam o meio ambiente e a saúde humana.
O setor está mergulhado nas benesses cedidas pelo governo, que, mesmo durante a crise da covid-19, continuou priorizando as commodities em detrimento da agricultura familiar - responsável por 70% da produção de alimentos que chega na mesa dos brasileiros.
“Essa agricultura financeirizada, na qual a comida vira uma mercadoria a ser especulada, é a responsável pela fome que os brasileiros e brasileiras estão enfrentando”, ressalta Mafort.
Além disso, Jair Bolsonaro, que também participou do lançamento da campanha, foi o responsável pelo esvaziamento da Lei Assis Carvalho, que previa medidas emergenciais de auxílio aos pequenos agricultores prejudicados pela pandemia e que poderiam intensificar a produção de alimentos, tanto para subsistência quanto para o abastecimento de bancos públicos.
Após os vetos presenciais, a justificativa do Palácio do Planalto foi a de que não haveria recursos para bancar o auxílio.
Recursos paralisados
É também o mesmo governo que agora apoia o “Agro Fraterno” que mantém verbas de programas essenciais para a produção alimentar congelados.
Neste contexo, e com a desidratação crescente das políticas públicas e o aumento da fome no país, segmentos de oposição seguem pressionando a gestão Bolsonaro para que sejam liberados R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) em 2021.
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Voltado à promoção do acesso à alimentação e ao incentivo da agricultura familiar, o PAA tem orçamento vinculado ao Ministério da Cidadania e é visto pela oposição como política estratégica para o combate à fome, que afetou 10,3 milhões de brasileiros durante a pandemia, enquanto mais de 125 milhões de pessoas tiveram algum grau de insegurança alimentar no período.
Apesar da solicitação de R$ 1 bilhão, a cartilha de enxugamento de gastos do governo fez com que apenas R$ 500 milhões fossem previstos para o programa no período.
Desse total, R$ 240 milhões não chegaram a ser executados segundo informado pela própria Tereza Cristina, ministra da Agricultura, em abril.
“É lamentável que, em plena pandemia, com milhões de pessoas passando fome, com os agricultores desde o começo da pandemia sem nenhum auxílio, sem nenhum apoio, [a gestão] tenha R$ 240 milhões parados no ministério por incompetência do governo e por opção de não se executar o recurso”, critica Alexandre Conceição, também da direção do MST.
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Estudos técnicos dos segmentos populares em parceria com a oposição indicam que a paralisação da verba se deu no nível dos repasses feitos a estados e municípios, que acabam tendo execução lenta e balizada pelos interesses políticos locais.
Por conta disso, os opositores pressionam o governo também para que a verba do PAA para este ano seja mais concentrada na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
A empresa pública vinculada ao Mapa, é a responsável pela execução do PAA diretamente com associações e cooperativas da agricultura familiar.
O método é o mais defendido pelos segmentos populares para a efetivação do programa porque, além de mais célere, fortalece a pequena agricultura.
“É a melhor forma. A verba que está parada no PAA está nessa situação porque foi destinada principalmente para prefeituras e municípios. Se o governo tivesse destinado à Conab, para as associações dos produtores da agricultura familiar, com certeza teria sido gasto e executado e hoje teríamos muito mais produtos pra oferecer”, diz Conceição.
Enquanto as políticas de agricultura familiar sofrem um sucessivo desmonte, outros projetos como o PL 510/21, conhecido como PL da Grilagem, e a liberação recorde de agrotóxicos, têm sido priorizados pelo governo.
“Por tudo isso não podemos aceitar que essa campanha do agronegócio é solidariedade", , enfatiza Kelli Mafort.
Solidariedade é o povo ajudando o povo. Arrancarmos do Estado políticas sociais para salvar vidas. Estamos na pandemia do vírus e da fome, mas promessas falsas como essa do agronegócio, precisamos rechaçar e dizer: 'Agronegócio é morte, é fome, é veneno'”
Solidariedade de verdade
Mesmo atingidos pela ausência de políticas públicas, são os movimentos do campo e da cidade que estão no front do combate à fome no Brasil.
Ao passo que a pandemia do novo coronavírus se proliferava em nível nacional, nasciam iniciativas coletivas de apoio às populações mais vulneráveis em todos os cantos do país.
O MST, por exemplo, é protagonista de uma série de ações de solidariedade. Somente em 2020, foram doadas mais de 4 mil toneladas de alimentos, 20 mil máscaras de proteção e 700 mil marmitas após a chegada da covid-19.
Ainda de acordo com dados recentes da organização, em 2021, as ações já ultrapassam mais de 300 toneladas de alimentos, 180 mil marmitas solidárias, 1.800 máscaras de proteção e cerca de 3 mil cestas. Os sem-terra estimam que tal quantidade de comida equivale a capacidade total de carga de 870 caminhões de pequeno porte.
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Em nível nacional, as ações populares foram canalizadas em duas iniciativas principais.
Uma delas foi a campanha “Vamos precisar de todo mundo”, construída pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo Sem Medo, que reúne organizações do campo e da cidade que arrecadaram alimentos para populações mais vulneráveis.
O site da campanha apresenta um mapa com os “pontos de solidariedade” registrados em todo o país, assim como informações bancárias para aqueles que querem realizar doações financeiras para as organizações fortalecerem suas ações de solidariedade.
A outra iniciativa é o Periferia Viva, criada como uma resposta popular à ausência de políticas efetivas do governo Bolsonaro em meio à pandemia.
Além do MST, integram a campanha o Levante Popular da Juventude, o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), a Rede de Médicos e Médicas Populares, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e Consulta Popular.
Edição: Leandro Melito