Durante o governo Lula, o Brasil promoveu uma política externa ativa e altiva, através da qual buscou-se uma universalização da presença do país no mundo e uma diversificação de parcerias voltadas à garantia da autonomia e do desenvolvimento nacional.
Ao mesmo tempo em que se manteve boas relações com os países desenvolvidos, com destaque aos EUA, fomentou-se uma interação estratégica com países do Sul Global com o objetivo de fortalecer a posição brasileira perante as grandes negociações e expandir novos mercados. As relações com a América do Sul, os BRICS e a China eram, então, vistas de forma estratégica para a inserção internacional brasileira.
Com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, esse projeto de política externa e inserção ativa começaram a ser desmantelados, ao mesmo tempo em que o ambiente externo se tornou mais polarizado pelo aumento das rivalidades interestatais e monopolísticas, em especial entre China e EUA.
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De fato, no governo de Donald Trump, as disputas entre China e EUA pelo controle das estruturas de poder internacional desdobraram-se não apenas em uma guerra comercial como também na tentativa, por parte dos EUA, de bloquear o desenvolvimento tecnológico da China.
Para tal, promoveram, de um lado, um relativo desacoplamento entre China e EUA em áreas sensíveis, como a da tecnologia da informação e comunicação, e, de outro, passaram a pressionar seus aliados no mundo todo a ajudarem na contenção da China e de suas iniciativas, como a Belt and Road.
O Brasil não esteve imune a essas pressões. Durante os dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, a opção do Itamaraty pelo alinhamento diplomático com os EUA de Donald Trump foi contrabalanceada pela necessidade de se manterem boas relações com a China, impulsionada por importantes grupos internos, tanto forças políticas e sociais que entendiam a importância da diversificação das parcerias para o desenvolvimento quanto grupos econômicos, em grande parte base de apoio do próprio governo, como o agronegócio, que têm se beneficiado da ascensão chinesa.
Como resultado, na prática, e em contrariedade ao que desejaria Bolsonaro – que era ficar incondicionalmente ao lado de Trump – o Brasil não consolidou posição contrária à China na disputa com os EUA.
Contrapor-se diretamente a um dos lados teria sido um tiro no pé da inserção internacional brasileira. Vivemos um período de transição de poder em que há muita incerteza sobre a direção que tomará a distribuição do poder mundial e a própria disputa sino-americana. Diferentemente do período da Guerra Fria entre EUA e URSS, a interdependência econômica que liga China e EUA torna inviável pensar áreas de influência em que os países sejam colocados como opções excludentes.
Apesar da tentativa de desacoplamento econômico promovida pelos EUA em alguns setores, a interconexão das cadeias produtivas globais e a atual divisão internacional do trabalho não permitem que outros Estados possam abdicar de um ou outro país.
No caso do Brasil, há ligações profundas tanto com os EUA quanto com a China. Os EUA, como maior potência econômica e militar do globo, com grande influência sobre o continente americano, têm sido tradicionalmente o país a que a política externa brasileira mais dedica sua atenção. O país tem largo histórico de interferência na política brasileira, é o segundo maior parceiro comercial do Brasil e fonte de investimentos diretos externos para o país.
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Por outro lado, a China tornou-se nas últimas duas décadas uma importante parceira política e econômica. O Brasil é parceiro estratégico do país desde 1993, possui com ele uma comissão de alto nível de concertação e cooperação desde 2004, uma parceria estratégica global desde 2012 e ambos fundaram conjuntamente o grupo BRICS, o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas.
Economicamente, a China é desde 2009 a maior parceira comercial brasileira, constituindo-se na maior fonte de superávit da balança comercial. É importante para alguns setores exportadores específicos como o agronegócio, o extrativo mineral e de petróleo e, na última década, tornou-se ainda uma importante investidora na economia brasileira.
Assim, pela importância que tanto China como EUA têm para o Brasil, torna-se imperativo que os países não sejam vistos como opções excludentes para a política externa e a inserção internacional brasileira.
Cabe à diplomacia encontrar espaços de manobra entre as duas potências visando atender aos interesses do país e, quando for necessário que uma posição favorável a um ou outro seja tomada, que na medida do possível sejam extraídas vantagens e que essas decisões sejam colocadas não como parte de uma ação que atenda a objetivos oportunistas de curto prazo, mas que façam sentido dentro de um plano que garanta autonomia e desenvolvimento nacional.
Citam-se dois exemplos:
No caso do 5G, que foi durante o governo Trump a área em que os EUA mais exerceram pressão sobre o Brasil, visando causar a eliminação da empresa chinesa Huawei do leilão nacional da tecnologia, não houve nada de concreto, além de discursos vagos, que os EUA tenham oferecido ao Brasil.
Em contrapartida, a Huawei tem sido desde a década de 1990 importante ator dentro do setor de telecomunicação brasileiro, fornecendo equipamentos a várias empresas. Ela possui a tecnologia 5G com o melhor custo/benefício do mundo, e é do interesse de grupos que atuam no setor do Brasil que a empresa participe do pleito. Os EUA não ofereceram nada para produzir mudanças nessa estrutura de vantagens que o país pode obter mantendo a participação da Huawei no 5G nacional.
No caso da Belt and Road Initiative (BRI) – grande projeto de política externa de Xi Jinping, ao qual a China tem buscado adesões como forma de apresentá-las como uma legitimação de sua atuação no mundo –, o Brasil foi convidado a participar junto com outros países da América Latina em 2015. Para a China, a adesão do Brasil, o país mais importante da região, poderia contribuir para que outros também aderissem, motivo pelo qual tentou-se enquadrá-lo dentro da BRI.
Contudo, a entrada do país na iniciativa pouco alteraria o modelo de expansão da China no Brasil, que já era semelhante ao proposto na BRI: interconexão entre comércio, investimentos e financiamentos, focados no desenvolvimento de infraestrutura. Assim, não participar da BRI não alteraria a estrutura de vantagens que o Brasil já possuía nas relações com a China.
De fato, nesse cenário de incertezas, o Brasil precisa de um plano no qual possa se basear para tomar as difíceis decisões que advirão desse cenário externo de crescentes fricções. Esse plano não pode contemplar alinhamentos cegos, deve recusar opções excludentes e a limitação da autonomia nacional e, ainda, precisa refazer o importante nexo entre política externa e desenvolvimento que foi perdido com o golpe de 2016. Diante da “guerra fria” entre China e EUA, o lugar do Brasil é ficar do lado do Brasil.
Ana Tereza Marra é doutora em Relações Internacionais, professora de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e vice-coordenadora do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb) da UFABC.
Edição: Cris Rodrigues