ENTREVISTA

Neta de Leocádia Prestes critica escola cívico-militar no RS: "Temos que combater"

Prefeito de Porto Alegre (RS) e deputado estadual Tenente-Coronel Zucco indicam escola sem a adesão do conselho escolar

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Anita Leocádia Prestes, ao lado da foto de sua mãe Olga Benário, lembra que sua avó era professora e antimilitarista e educou os filhos assim também - Arquivo pessoal

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Leocádia Felizardo Prestes, que fica na Cohab Cavalhada, zona sul de Porto Alegre, foi centro de uma polêmica na semana que passou. Na última segunda-feira (10), o deputado Tenente-Coronel Zucco (PSL) lançou um vídeo nas suas redes sociais anunciando que a escola seria a primeira de Porto Alegre a adotar o modelo cívico-militar. O deputado estadual é autor da Lei 15401, de 17/12/2019, que estabelece o Programa Estadual das Escolas Cívico-militares.

Dois dias depois, na tarde de quarta-feira (12), o ministro da Educação, Milton Ribeiro, esteve em Porto Alegre para receber das mãos do deputado a medalha da 55ª Legislatura da Assembleia Legislativa, “uma honraria em reconhecimento ao apoio decisivo do MEC na implementação do modelo de escolas cívico-militar no RS”.

Antes da solenidade, o ministro foi recebido pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, no Paço Municipal. O prefeito, então, encaminhou a indicação da Escola Leocádia Felizardo Prestes, como a primeira a fazer parte do projeto de escolas cívico-militares na Capital gaúcha.

No entanto, a indicação não foi “combinada com os russos”, ou seja, a direção e o conselho escolar não estavam sabendo da indicação. Em uma nota de esclarecimento divulgada na sexta-feira (14), a diretoria da instituição informou que nunca aderiu à proposta. O diretor da escola, Aldemir do Nascimento, disse que recebeu um formulário da Secretaria Municipal de Educação e preencheu. “Minha intenção era oferecer à comunidade escolar a possibilidade de avaliar, entender a proposta e decidir. Não decido nada sem o conselho escolar, por isso manifestei interesse em conhecer as diretrizes.”


Em nota pública, a diretoria da instituição informou que nunca aderiu à proposta / Divulgação

Segundo o diretor, após responder à secretaria, duas representantes da prefeitura visitaram o colégio acompanhadas da vereadora Nádia Gerhard (DEM) e do deputado Tenente-Coronel Zucco (PSL), ambos apoiadores de Bolsonaro. Aldemir sentiu certa pressão – reforçou, então, que precisava dividir a ideia com pais de alunos, professores e estudantes.

A implantação das escolas cívico-militares é uma iniciativa do Ministério da Educação em parceria com o Ministério da Defesa. O critério de escolha das instituições leva em conta regiões de vulnerabilidade social, com extrema violência e indicadores de desempenho abaixo da meta. As escolas devem atender acima de 400 alunos, do 1º ao 9º ano de ensino fundamental, nos turnos da manhã e tarde. Critérios nos quais a EMEF não se enquadra, já que atende a Educação Infantil e EJA.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a neta de Leocádia e filha de Luís Carlos Prestes, Anita Leocádia Prestes afirma que a escolha da escola não parece casualidade. “Eu não sei quantas escolas têm em Porto Alegre, mas é uma imensidão de escolas, uma quantidade enorme de escolas públicas. Por que exatamente essa? Parece uma provocação.”

Prestes nasceu em Porto Alegre, no dia 3 de janeiro de 1898. Filho de Antônio Pereira Prestes e de Maria Leocádia Felizardo Prestes, foi militar, político e líder da grande marcha pelo interior do país conhecida como Coluna Prestes. Comandou o Partido Comunista Brasileiro por mais de 50 anos.

Brasil de Fato: Como a senhora vê essa proposta de escolas cívico-militar?

Anita Prestes : A gente tem que combater. Eu sou professora também, e os educadores, especialistas em educação têm se pronunciado, mostrando que isso é uma militarização da escola. É transformar nossas crianças e jovens em robôs para cumprir ordens, uma disciplina militarizada. E não é a disciplina que forma cidadãos. A escola pública deve ter essa missão.

Isso já vem desde os anos 1930, com a escola nova. Essa ideia já foi divulgada e amplamente debatida. Tivemos o educador Paschoal Lemme que teve uma importância muito grande, além de vários outros educadores. A escola pública tem um importante papel, não só de transmitir conhecimento, mas de formar cidadãos brasileiros, pensantes, conscientes.

Essa militarização estilo Bolsonaro é para o pessoal cumprir ordem unida, prestar continência, cantar o hino. Tudo bem que cante o hino, isso eu não tenho nada contra, é bom que saibam o hino nacional, mas isso não pode estar associado a uma ideia de disciplina militar, educar através do castigo, quer dizer, fez alguma coisa que o professor acha que não é correto, vai castigar. Não é assim que se educa as crianças e jovens.

O programa deve ter participação, saber quais são os problemas que essa criança na escola está vivendo, ainda mais escolas de periferia, ter contato com as famílias, para ajudar a criar um ambiente propício justamente pra educar cidadãos. Essa era a mentalidade da minha avó, que foi professora, imagina, lá no início do século passado...

Na sua opinião, como sua avó receberia essa proposta?

Leocádia foi casada com um militar, o meu avô era capitão do Exército, morreu cedo, mas era capitão, serviu em várias unidades, inclusive no Rio Grande do Sul, em Alegrete, Ijuí, vários lugares, e aqui no Rio de Janeiro também.

E ela acompanhando como esposa, ficava indignada, o meu pai conta isso, eu incluí na biografia. Quando eu falo na Leocádia, eu transcrevo um depoimento dele, em que diz que ela era indignada com a forma como ela tinha presenciado os oficiais tratarem os soldados, inclusive com castigos corporais naquela época. Também a corrupção, a roubalheira, a luta por cargos, por promoções dentro do Exército. Então ela era muito antimilitarista.

O meu pai só foi servir no Exército para fazer esse colégio de escola militar por falta de opção. Ele ficou órfão, e a única escola que tinha gratuidade sendo órfão de militar, era o colégio militar e a escola militar. Então por isso que ele foi ser militar, que não era a opção dele de jeito nenhum. E ele sempre contava isso, que tinha sido educado no antimilitarismo, ela era profundamente indignada e contrária ao militarismo.

E minha vó educou os cinco filhos, meu pai e mais quatro irmãs, para serem bons cidadãos brasileiros, participantes da vida política, da vida social, cultural, mesmo na maior dificuldade, que passaram muitas dificuldades, sempre liam os jornais, debatiam os problemas nacionais e internacionais. Ela era uma pessoa participante, e educou os filhos assim também.

Então, é um acinte à memória dela isso, transformar essa escola, que é uma escola bonita... Eu já visitei essa escola três vezes, estive na inauguração que foi em março de 1987, onde meu pai teve presente. Fomos eu e duas das irmãs dele também, a Eloísa e a Lygia. Inclusive tem notícia nos jornais de Porto Alegre, do dia 6 de março de 1987. Foi na gestão do prefeito Alceu Collares. E depois eu voltei duas vezes, a última vez em 1997.

A diretora da época e as professoras faziam um esforço grande no sentido de educação cívica, de cidadãos, daqueles garotos e garotas. Eu me lembro que tinha uma cozinha muito boa, eu até almocei lá com eles, faziam uma comida com muito cuidado, e havia um trabalho interessante. Inclusive eu me lembro que tinha um quadro sobre a vida da Leocádia...

E por que colocaram o nome dela na escola?

A Leocádia foi professora aqui no Rio, na escola pública. Ela veio cedo com o marido doente, veio se tratar aqui no Rio, aí ela ficou aqui. E ela conseguiu ser professora. Inclusive dava aula em escolas em subúrbios distantes aqui do Rio de Janeiro, e pra mulheres donas de casa, empregadas domésticas, comerciárias. Era esse tipo de mulheres que frequentavam as aulas dela que eram noturnas.

O prefeito Alceu Collares e a secretária de Educação na época, que era esposa do prefeito, a dona Neusa, lembraram que ela era uma mulher gaúcha, combativa, e tinha sido professora, então acharam interessante que merecia homenagem. E aí convidaram o Prestes e a família para comparecer, e nós comparecemos.


Livros de Anita Prestes trazem ampla pesquisa sobre a história de seus pais e avós / Divulgação

E a sua vó Leocádia era comunista?

Só com 60 e tantos anos ela se transformou em comunista. E nesse sentido foi muito importante a estada dela na União Soviética. Ela foi acompanhando o meu pai quando ele foi trabalhar como engenheiro em 1931 na União Soviética. Foram ela e as quatro irmãs. Aqui no Brasil e na Argentina não tinha condições de sobreviver.

Lá na União Soviética era extremamente difícil na época, estava no período inicial da revolução, muita dificuldade. No início ela ficou bem chocada, depois ela ficou impressionada com a coragem, a disposição de luta e de trabalho do trabalhador soviético, isso impressionou profundamente, e aí ela resolveu virar comunista. Inclusive aprendeu datilografia, que tinha uma filha que era excelente datilógrafa, para poder ajudar a copiar os documentos do partido.

Então ela era uma mulher muito combativa, você sabe que ela saiu lá da União Soviética acompanhada pela Lygia, a filha mais moça, para dirigir a campanha internacional de solidariedade aqui pela libertação dos presos políticos do Brasil. O resultado dessa campanha é que ela conseguiu me resgatar da prisão, tinha uma pressão internacional muito grande, e para ela isso foi muito difícil, porque embora fosse muito participante, nunca tinha participado diretamente assim da política. Apoiava o filho, mas diretamente participar de uma campanha internacional, dar entrevistas, todas essas atividades foram muito pesadas pra ela, já doente, com idade, mais de 60 anos.

Além disso, estava muito golpeada com a prisão do filho aqui no Brasil. No primeiro ano não tinha notícia nenhuma, não sabia o que estava acontecendo com ele. E logo depois a Olga, minha mãe, foi extraditada para a Alemanha. Eu nasci na Alemanha, e no início foi uma dificuldade muito grande. Eu já tinha mais de um ano quando ela conseguiu me resgatar. Mas isso fruto de uma pressão internacional muito grande.

Eu fiz uma pesquisa para o meu livro “Olga Benário Prestes: uma comunista na Gestapo”. E essa documentação é muito interessante, os alemães são muito organizados, tudo estava lá informado. A quantidade de telegramas, cartas, moções do mundo inteiro que chegavam para as autoridades alemãs, exigindo melhores condições para Olga e a minha libertação e a libertação da Olga. Foi uma pressão muito grande e levou as autoridades alemãs a chegarem a conclusão que era melhor se livrar de mim, já que tinha essa avó que estava lá batendo na porta e querendo me levar. Depois disso, minha mãe ainda viveu quatro anos.

Eu nasci numa prisão em Berlim. Após a minha libertação, ela foi transferida para os campos de concentração. Aí era outra barra muito pior, ela ainda passou quatro anos em campos de concentração até ser assassinada. E eles escreviam nos documentos que ela não podia ser libertada de jeito nenhum, enquanto não delatasse os companheiros, isso ela sempre se recusou. Tem até uma frase lá no depoimento dela, que diz: “se outros se tornaram traidores, eu jamais o serei”. Ela nunca se submeteu a delatar quem quer que fosse. Com isso, a barra foi muito pesada, acabou sendo assassinada numa câmara de gás. Não foi só ela, teve muitos outros. Eles diziam que ela era uma comunista perigosa, que não tinha jeito, não tinha correção. As informações que trazem essa documentação são muito importantes, por um lado a barbárie do nazismo, por outro lado, a coragem, a honra de outros companheiros também, que resistiram, mesmo nas condições mais terríveis em campos de concentração.

O que lhe pareceu o deputado ir fazer esse vídeo justamente na escola Leocádia Prestes, mesmo sem a confirmação da direção?

Não parece casualidade, né? Eu não sei quantas escolas têm em Porto Alegre, mas é uma imensidão de escolas, uma quantidade enorme de escolas públicas. Por que exatamente essa? Parece uma provocação.

Mas a nota dos diretores da escola é interessante, eles deixam muito claro que não foram convidados, eles não estão sabendo de coisa nenhuma, isso foi uma imposição e muito desagradável. A nota diz que começaram a usar, inclusive vídeo dos professores, sendo que os professores não foram consultados, e a comunidade muito menos.

Aliás, como diz na nota, a escola tem educação infantil e EJA, não podia ser transformada em escola cívico-militar. Parece que uma das normas para transformar a escola em cívico-militar é que não tenha nem educação infantil, nem EJA. Eles alegam isso aí. Então já por isso não poderia ser. Ora, em primeiro lugar não foi consultada a comunidade, em segundo, é uma atitude de capitulação.

Um dos argumentos para esse modelo é acabar com a violência. Na sua visão essa é a melhor forma?

A Cavalhada é um bairro da periferia, parece que tem muita violência lá, aliás como em toda a parte, em todas as periferias. Mas a maneira de combater essa violência não é criando escola cívico-militar. Aqui no Rio teve a experiência dos CIEPs com Leonel Brizola, que realmente revelou isso. Esse modelo de escolas de dia inteiro, onde a criança ia de manhã e passava lá o dia inteiro recebendo não só aula e fazendo o programa escolar, como pesquisas, esportes, várias atividades culturais, alimentação... A criança já chegava em casa de noite de banho tomado, alimentado.

Então isso é o que iria propiciar, se tivesse prosseguido, tirar essas crianças da rua, transformar essas crianças em cidadãos. E a assistência que também era dada pelo CIEP às famílias dessas crianças, isso era muito importante. Tinha no Rio o CIEP Olga Benário, que até o meu pai inaugurou. A gente visitou na inauguração e voltamos um ano depois. A diferença que a gente sentiu naquelas crianças era emocionante, porque as crianças estavam mais bem dispostas, todas com seus uniformes, fazendo pesquisa, tinham microscópios, e todas animadas fazendo pesquisa. Levaram meu pai para ver os laboratórios que eles tinham. Olha, realmente em um ano as crianças eram outras.

Não é a escola cívico-militar que vai tirar essas crianças da rua e do crime. Aqui esses morros do Rio de Janeiro, agora o Jacarezinho, qual é a perspectiva que tem esses garotos, às vezes pequenos, de 10, 11, 12 anos. Escola, não presta, né. Trabalho também não tem. Então, o que sobra para eles é justamente o tráfico, onde eles vão ganhar dinheiro e vão poder comprar coisas que eles aspiram, que a televisão mete na cabeça deles, tênis não sei como, camiseta também de modelo tal...

Depoimentos de garotos de 16, 17, 18 anos, menores de idade, que sabem que vão morrer cedo no crime, mas enquanto estão vivos eles estão aproveitando, compram as coisas que eles querem. É uma coisa trágica. E não é a maneira de resolver o problema da violência. Isso que eu acho que inclusive é importante esclarecer às populações, porque às vezes as pessoas estão mal informadas, e acompanham essa propaganda que através de escolas militarizadas, disciplina rigorosa, que isso é que vai resolver. Não vai resolver. A experiência internacional tem escrito a respeito, não resolve, não é com a violência que se resolve. É com educação, com boa educação.

Na sua campanha eleitoral, o Bolsonaro dizia que ele ia destruir tudo, ia acabar com tudo. É isso que ele está tentando fazer, acabando com a cultura, com a educação, com a saúde, com todos os aspectos importantes da vida do ser humano.


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira