luta antimanicomial

Artigo | Dia 18 de maio: Ainda estampamos nossas caras com uma insana alegria

A luta Antimanicomial é fruto de um processo histórico chamado “Reforma Psiquiátrica”

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Reforma psiquiátrica é um processo de mudança na concepção do saber sobre o que é a “loucura” ou o sofrimento psíquico - Reprodução / Luta Antimanicomial RJ

Burburinho. Cartazes prontos. Quem carrega as faixas? Todos já chegaram? O lanche está pronto para o momento da fome. Maria leva o megafone e Paulo carrega as folhinhas com palavras sobre liberdade para distribuir para quem for encontrando no caminho. Cláudia chamou a filha para participar neste dia. E Rogério que não se abre muito nos espaços terapêuticos, hoje divide sorrisos com quem encontra. A música já está tocando e todos vão saindo rua afora.

Esta poderia ser uma cena comum para o dia 18 de maio, dia da Luta Antimanicomial. Talvez a maioria da população nunca tenha ouvido e muito menos dito essa palavra um tanto difícil de pronunciar. Mas, para nós que estamos próximos ao campo e aos serviços direcionados ao cuidado em saúde mental, o dia 18 de Maio é um dia caro. Dia de estar na rua. Dia de vestir as esquinas com diferentes cores.

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Dia de mover os cartazes escritos pelos trabalhadores, familiares ou usuários dos serviços de saúde mental da rede de atenção psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS). Nas palavras escritas, alguns jargões tradicionais como “De perto ninguém é normal”, “tratar sim, excluir jamais”, “Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais”. Se pudéssemos, estaríamos agora vivenciando o ar de luta e alegria desta data.

Talvez o significado do dia 18 de maio se estenda ao seu ápice neste lugar: a rua. É justamente sobre conviver na cidade, nas suas infinitas diferenças, que a luta antimanicomial grita. Mas o que é, afinal, isso que propõem?

Falamos do caminho de mudança de concepção e cuidado em saúde mental. Se, por muito tempo, a atenção ao sofrimento psíquico se deu com a centralidade no manicômio, a luta antimanicomial defende que o cuidado deve ser em liberdade, nos espaços onde vive a população, em conjunto com suas famílias, entendendo a cidadania e o acesso aos direitos como fundamentais na produção de saúde de qualquer pessoa.

Violação de direitos humanos

Nos antigos manicômios, ou ainda em muitos hospitais psiquiátricos atuais, como podemos ver na inspeção nacional de hospitais psiquiátricos do Brasil, realizada pelo Conselho Federal de Psicologia no ano de 2018, se fazem presentes marcas das condições de tratamento outrora hegemônico neste campo: situações de violação de direitos humanos, exclusão do convívio social, locais de péssima higiene, exploração de mão de obra dos internos, a falta de espaços terapêuticos, entre outros.

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A Luta Antimanicomial é fruto de um processo histórico chamado “Reforma Psiquiátrica”, processo complexo, que não se acaba e que segue em construção. A reforma psiquiátrica é um processo de mudança na concepção do saber sobre o que é a “loucura” ou o sofrimento psíquico.

Tratamento redirecionado

Assim, ela faz um giro na percepção do cuidado, saindo da centralidade do tratamento sobre uma doença (ou um código classificatório) para centrar sobre o sujeito que sofre e suas relações. Desta forma, o cuidado é singular, sem possibilidade de ser generalizado através apenas de uma ou outra medicação ou internação perpétua.

No Brasil, a reforma se manifesta principalmente através da Lei 10.216, do ano de 2001, que sanciona os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de tratamento.

Desde então, construímos dentro do SUS, um aparato que se propõe a fazer um trabalho de âmbito comunitário, com participação popular, garantia de direitos e o respeito à autonomia dos sujeitos.

Neste aparato estão os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), o cuidado nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), espaços coletivos de geração de renda, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), hospitais gerais, Centros de Convivência, entre outros.

Pioneirismo

O Brasil, de certa forma, foi pioneiro nestas movimentações institucionais, se compararmos com nossos países vizinhos, que seguem ainda na batalha para tirar a centralidade do manicômio. 

Uma história de respeito e de perseverança que continua nos fazendo questionar diariamente o que é cuidar num país com uma desigualdade social abissal, que carrega suas marcas coloniais, recordista no assassinato de pessoas LGBTqi+ e na violência contra mulheres, e que extermina sua população negra e indígena. Como criar saúde neste contexto?

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Temos vivenciado retrocessos no campo da saúde, de forma geral, e da saúde mental, de forma particular, que podem ser percebidos através da diminuição crescente de recursos destinados aos serviços substitutivos ao manicômio, como os CAPS, do incentivo às Comunidades Terapêuticas - espaços tão controversos - e o consequente desinvestimento na Política de Redução de Danos, do avanço da cultura neoliberal de medicalização da vida incentivada pela indústria farmacêutica, dentre muitos outros exemplos de desmonte do SUS.

Sabemos que o processo de luta antimanicomial não é algo que se acaba. Começou e continua no corpo das pessoas. No corpo dos trabalhadores do SUS. Nos corpos e vidas que seguem resistindo e apresentando a diversidade das formas de ser e estar no mundo.

Valor da liberdade

Por isso o 18 de maio nos é tão caro. Gostamos de estar nas ruas com cores e canções, gritando pelo valor da liberdade. Neste ano, que não poderemos estar nas ruas amontoados, estaremos fazendo o que temos feito diariamente: inventado condições de resistir!

E a luta antimanicomial demonstra que a invenção deve ser através do encontro das diferenças, das mais lindas e singulares formas de lutar, amar, ser e viver. Se querer inventar outra realidade é ser louco, faremos da nossa loucura nossa força para a luta!

 

*Karoline Germano (Enfermeira); Roger Meneghetti (Educador Físico); Marlize Gelatti (Terapeuta Ocupacional); Luna Trott (Psicóloga); Nina Becker (Psicóloga); Luisa Susin (Psicóloga) e Wesley Carvalho (Assistente Social) integram o Coletivo Combi. 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Vivian Virissimo