“El derecho de vivir en paz” (Victor Jara)
Vendido aos quatro ventos como exemplo do triunfo neoliberal na América Latina, o Chile mostra de forma escancarada que o verniz de pujante economia com alto nível de renda per capita começa a se desfazer. O modelo de estado subsidiário, engendrado ainda nas décadas de 1970 e 1980 pela ditadura atroz de Pinochet, que há muito já evidenciava sinais de fracasso, ruiu de vez.
A alta concentração de renda e o elevado custo de vida, sobretudo nas grandes cidades, evidenciaram para os chilenos que este modelo em que se protagoniza o capital em detrimento de serviços públicos básicos à população somente favorece a uma pequena elite daquele país.
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Em que pese ter sido governado durante toda a década de 1990 e boa parte dos anos 2000 por uma frente de partidos políticos de centro-esquerda, as principais heranças neoliberais do “legado Pinochet” se mantiveram na redemocratização e, até mesmo a Constituição, imposta em 1980, figura como um dos símbolos perenes daquele regime.
Assim, a ausência de participação popular nas decisões estatais somada à falta de condições dignas de vida para a população, como para os trabalhadores, dada a quase ausência de leis trabalhistas, ou para estudantes de baixa renda, sem a perspectiva de um ensino público superior gratuito, ou mesmo para boa parte dos idosos, que recebem aposentadorias geridas por fundos privados inferiores a um salário mínimo, culminou no chamado “estallido social”, em 2019.
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O estallido, traduzido como estalo ou surto, não foi do acaso, mas fruto de uma série de movimentações de massa que o Chile vinha vivenciando desde anos anteriores, como as revoltas estudantis entre 2011 e 2012. Como todo grande movimento de massas, é possível ver uma enorme diversificação de bandeiras levantadas nos inúmeros protestos que sacudiram o país depois de 18 de outubro de 2019.
Todas elas, no entanto, caminham no sentido da necessidade de mudanças estruturais no estado e na economia chilena. A Constituinte foi uma forma de canalizar todas estas lutas populares em torno de um objetivo comum e já nasceu com um projeto que garantia a paridade de gênero entre os eleitos e eleitas e uma reserva obrigatória de vagas para os povos originários.
Assim, não é à toa que a direita, tentando se segurar nos privilégios herdados pelo regime ditatorial, foi a grande derrotada de todo esse processo de criação da nova Constituição. Já no ano passado, a confluência de partidos reacionários que sustentavam a base do atual Presidente, Sebastián Piñera, pugnou pelo “Rechazo” no plebiscito pela criação da Assembleia Constituinte, perdendo de forma vexatória para o “Apruebo”.
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Agora, na disputa pela composição desta Assembleia, ficou com menos de um terço das 155 vagas, perdendo a possibilidade de vetar as propostas apresentadas durante o processo de criação da Constituição.
Além da derrota na Constituinte, a direita também perdeu nas eleições para Prefeitos em importantes Comunas (semelhantes aos municípios no Brasil), como a de Santiago, que foi vencida por uma jovem candidata feminista militante do Partido Comunista Chileno, Irací Hassler.
Os primeiros passos para a derrocada do neoliberalismo naquele que já foi falsamente vendido como “modelo” para os demais países latino-americanos foram dados, algo que há alguns anos parecia impossível, inclusive com a esquerda na Presidência.
Agora, resta aos integrantes dos blocos de esquerda e aos independentes eleitos unirem forças para conseguir enterrar de vez o modelo socioeconômico gerido no regime militar. Que os ventos desta nova era chilena tragam forças para os partidos e movimentos populares que resistem aos avanços neoliberais autoritários do atual governo brasileiro!
*Homero Ribeiro é Professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e e associado do IPDMS.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo