Massacres ocorridos a olhos nus, em plena luz de um curto período dito democrático de nossa história
Por Carla Benitez Martins* e Marco Alexandre de Souza Serra**
Não há dia, fora ou especialmente dentro do Brasil, em que o desprezo por vidas - humanas ou que à nossa humanidade conferem dignidade - não se manifeste de modo cruento. Uma das expressões mais terríveis de referido desprezo são os massacres.
Execuções de três ou mais pessoas por uma mesma motivação – política - são cotidianas. Estamos atônitos acompanhando mais um episódio da postura genocida do Estado israelense para com o povo palestino.
E no Brasil soubemos, com tristeza, das mortes no município de Saudades. Lembramos de Realengo, de Suzano. Mas, principalmente, temos frescas as marcas histórica das chacinas da Candelária, de Vigário Geral, entre muitos episódios mais.
Neste artigo de opinião gostaríamos de nos deter, especialmente, em uma espécie de massacre. Não nos mobiliza aqui, pois, apenas uma genérica criminologia dos massacres, mas sim uma que se ocupe em perceber as violências que são realizadas diretamente ou sob o patrocínio ou mesmo que conte com a orientada e propositada omissão do Estado. Verdadeira criminalidade estatal organizada.
Neste domínio é que se inscreve o massacre, a chacina estatal, promovida no último 6 de maio, na favela do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro. Em plena pandemia, com a proibição jurídica declarada pelo STF de operações policiais nas favelas e comunidades neste contexto.
Rematada, previsível e proibida tragédia. Reveladora, além disso, do total menosprezo por parte dos aparelhos de Estado brasileiro quanto à repercussão e até mesmo às sanções já aplicadas pela comunidade internacional.
Morticínio
Veículos massivos de comunicação, bem como autoridades públicas supostamente representantes dos interesses de toda a nação foram a público legitimar o morticínio provocado pela polícia carioca, sempre sob o argumento de que se tratava de uma operação necessária para controlar a sanha dos “bandidos” “traficantes” que dominavam o território.
Choraram apenas a morte do único policial da cena e justificaram os outros 27 corpos estendidos no chão, cujas vidas e mortes valem pouco, quase nada. São vidas precárias, subvidas.
A este respeito, a última ou mais recente das carnificinas necessariamente remete a uma outra, transcorrida em condições em tudo semelhantes e em território muito próximo ao do Jacarezinho: a matança que se abateu sobre o vulnerável território de Nova Brasília, Complexo do Alemão, nos anos de 1994 e 1995, também no Rio de Janeiro.
Menos lembrado do que o que sucedeu em Paraisópolis, em dezembro de 2019, ou em Corumbiara e Eldorado dos Carajás, para também nos alertar que os massacres que contam com a decisiva contribuição estatal também ocorrem no campo e, desde 1985 até hoje, já totalizam 51 casos, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra, derivados, principalmente, de conflitos por água, terra, território ou trabalhistas.
Complexo do Alemão
Voltando ao Complexo do Alemão, este massacre foi objeto de emblemática condenação internacional. Mais precisamente, em 2017, por julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no qual se estabeleceu a necessidade de que o Estado brasileiro adotasse diversas medidas visando prevenir a ocorrência de novos episódios semelhantes.
Lá no Alemão, onde tudo é mais complexo, como anotou Vera Malaguti Batista, os mortos pelas incursões policiais se contaram em mais de duas dezenas (26, para ser mais exato), sem falar nos incontáveis torturados e nas três mulheres estupradas, duas delas adolescentes à época, em todos os casos reconhecidamente por policiais.
Fique claro que, dentre as diversas medidas impostas ao Brasil pela Corte Interamericana no caso da favela Nova Brasília, o Estado não foi além de veicular o acesso ao resumo, e mais raramente, ao inteiro conteúdo da decisão, em suas redes sociais oficiais.
Nada fez quanto a apurar e individualizar as responsabilidades, oferecer tratamento psicológico e psiquiátrico às vítimas, realizar um ato público de reconhecimento internacional, publicar anualmente um relatório oficial com os dados relativos às mortes produzidas durante operações policiais, estabelecer mecanismos de investigação independentes para crimes praticados por agentes de segurança pública, entre outras medidas mais.
Não são acidentes, muito menos personalizados a esse ou aquele agente atuante no caso concreto. São políticas gestadas estruturalmente pelas instituições de controle formal e informal do estado brasileiro, este que nasce e cresce com feição autoritária.
Estamos aqui nos lembrando de Carandiru, Pedrinhas, Pau D´Árco e todos aqueles mencionados anteriormente, massacres ocorridos a olhos nus, em plena luz de um curto período dito democrático de nossa história brasileira. Pensemos nos desaparecidos da democracia. Pensemos nos que foram brutalmente assassinados com a conivência dos aparatos do Estado.
Papel do Estado
E assim lembremos qual o papel do Estado nas relações sociais capitalistas, com ênfase às particularidades de uma realidade periférica dependente.
O quanto a constituição autocrática e profundamente violenta do estado brasileiro se ressignifica a cada tempo de uma história de permanências do seu sentido colonial, que carrega no centro dessa transição democrática um caminhão pesado – ou seria um tanque - que resta da ditadura empresarial-militar, esta que herda dos quatro séculos de escravidão a tecnologia cruenta e banalizante da violência oficial.
De Candelária a Jacarezinho, nada nos surpreende, tudo nos apavora. Todas essas vidas importam e suas memórias devem ecoar em nossas lutas por um outro mundo, sem grilhões, sem prisões, sem torturas, sem crueldade, sem morticínio, sem criminalidade estatal.
*Carla Benitez Martins, professora universitária, coordenadora do GT de gênero e sexualidade e integrante do GT de criminologia crítica e movimentos sociais do IPDMS. Integra a coordenação executiva da Pesquisa "Massacres no campo na Nova República", conduzida em parceria entre CPT e IPDMS.
**Marco Alexandre de Souza Serra, professor e pesquisador nas áreas de direito penal , criminologia e direitos humanos. Coordenador do GT de criminologia e movimentos sociais do IPDMS. Membro da ABJD e advogado criminal.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo