Dívida externa

Acordos sobre dívida com FMI ainda deixariam Argentina subordinada, dizem economistas

Governo argentino pede revisão de juros de dívida histórica contraída pelo macrismo, alvo de investigação por fraude

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |

Ouça o áudio:

Alberto Fernández em encontro com diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva: "Foi uma reunião construtiva". - Divulgação

O presidente argentino Alberto Fernández realizou, na semana passada, um giro pela Europa para renegociar as dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com o Clube de Paris, com vencimento em maio. Conseguiu apoio internacional declarado de seus pares por todos os países que passou: Portugal, Espanha, França e Itália.

Em todo caso, em um contexto de 42% de pobreza e 16% de inflação acumulada no ano de 2021, mesmo o acordo discutido de um prazo de 10 anos não seria suficiente para que a Argentina quite o notável valor de US$ 45 bilhões, um recorde de empréstimo já outorgado na história do FMI.

A viagem incluiu duas reuniões importantes para as negociações: com a diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, e com o papa Francisco, que tem realocado o Vaticano no cenário geopolítico.

Leia mais: Em visita à Europa, Alberto Fernández recebe apoio para negociar dívida externa

O retorno declaradamente otimista do presidente argentino se reflete no apoio que recebeu para postergar o vencimento com o Clube de Paris e para ter respaldo no pedido de revisão na política de juros do FMI no contexto da pandemia. Esta é a parcela mais expressiva da dívida atual da Argentina, contraída durante o governo do ex-presidente Mauricio Macri, em 2018.

Mas as perspectivas para uma nova negociação ainda são duvidosas. Após a reunião com o mandatário argentino, Georgieva apenas declarou que “nossa equipe irá trabalhar para um programa”.

:: Entenda a interferência norte-americana no conflito entre Israel e Palestina ::

No evento do dia 24 de março deste ano, Dia da Memória pela Verdade e Justiça, a vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner jogou as cartas sobre a mesa ao declarar, explicitamente: “Não podemos pagar essa dívida porque não temos o dinheiro para pagá-la”.

Uma dívida impagável

A afirmação fez eco ao que muitos já sabem e, por isso, boa parte da sociedade argentina defende que apenas o não pagamento seria uma saída justa. O valor acordado pelo macrismo com o FMI equivale ao valor de fuga de capitais no mesmo período, o que significa que não apenas a dívida seria ilegítima, como que o valor estratosférico não foi investido no próprio país.

Além do conhecimento dos funcionários do FMI sobre o esquema, o valor estrapola os protocolos do órgão para conceder um empréstimo.

:: Feministas propõem reforma estrutural do Judiciário argentino ::

“Nos quatro anos de governo Macri, foram retirados 86,2 bilhões de dólares do país através do Banco Central”, explica o economista Horacio Rovelli, especialista em temas fiscais e monetários e professor de Política Econômica na Universidade de Buenos Aires.

“A dívida com o FMI foi possível pelo perverso mecanismo de uma legislação que vem dos tempos da ditadura, criada pelo governo de Carlos Menem. O Estado paga seus contratos em pesos e os dólares vão ao Banco Central, que, por sua vez, os vende, claro, aos mais ricos.”, acrescentou o especialista.

A dívida é um mecanismo de dominação e de crescimento de uma minoria
Horacio Rovelli

Segundo cálculos realizados por economistas ligados ao governo, a Argentina deveria pagar 15 bilhões de dólares anualmente pelos próximos dez anos, mesmo com uma taxa reduzida a 2 pontos. “A economia argentina não gera excedentes para comprar esses dólares”, pontua Eduardo Lucita, economista integrante do Economistas de Esquerda.

“O Clube de Paris aceita a postergação dos prazos de vencimento da dívida sob a condição de um acordo também com o FMI. É uma situação tragicômica, eu diria, porque os mesmos que negociam no Clube de Paris são os mesmos que estão no FMI, com exceção dos Estados Unidos”, destaca Lucita, com o que denomina de mera “dialética financeira”.


Interesses privados no acordo com o FMI

No início das sessões legislativas deste ano, o presidente argentino anunciou a abertura de um processo judicial para investigar funcionários do governo anterior por suspeita de administração fraudulenta no que se refere à aquisição do empréstimo bilionário com o FMI.

Neste processo, um relatório solicitado ao Banco Central lista as pessoas físicas e jurídicas que realizaram a fuga de capitais. “É uma lista que mostra como o dinheiro entrou por uma porta e, imediatamente, saiu por outra”, observa Lucita.

“O governo deveria quebrar o sigilo bancário para que essa lista seja pública e exigir que o FMI ajude a rastrear onde estão os fundos, porque o órgão conhece os paraísos fiscais”, diz.

Há muitas ações que podem ser feitas, mas como o empréstimo foi uma decisão política, e não técnica, a solução para ele também será política e não técnica.
Eduardo Lucita

Neste sentido, Rovelli aponta que o que está em jogo é o Rio Paraná, mais especificamente na zona do Porto de Rosário. “As grandes empresas que operaram a fuga de capitais são as que estão impondo a volta da privatização do Rio Paraná. Dos 31 portos que atuam ali, 21 são privados, onde estão, por exemplo, Cargill, Cofco, ADM Agro, Bunge, Dreyfus, a ex-Vicentin, que agora parece que será Glencord”, enumera.

O Porto de Rosário é o maior exportador de grãos do mundo, como destaca Rovelli. “Em Rosário, o sistema sanitário colapsou, e de onde sai 80% da riqueza do nosso país. Não podemos pagar esses juros”, diz.

“A dívida é um mecanismo de dominação e de crescimento de uma minoria que tem um poder econômico muito grande”, continua Rovelli. “Essa dívida beneficia os que retiraram capitais do país, o que aconteceu com conhecimento dos funcionários do FMI porque é interessante para o Fundo aplicar o modelo extrativista agroexportador e, para isso, precisam que sejamos pobres.”, concluiu.

Edição: Rebeca Cavalcante