O governo brasileiro paralisou a reforma agrária progressivamente, desde 2017, com cortes de orçamento e interrupção das desapropriações baseados em acórdãos publicados pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Sob os governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (sem partido), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) atendeu prontamente cada recomendação do Tribunal, se desresponsabilizando de acompanhar as condições dos assentamentos considerados “consolidados”.
No último dia 28 de abril, o TCU publicou uma nova orientação, desta vez no sentido contrário. O acórdão nº 959/2021 recomenda que o Incra avalie o processo de consolidação de assentamentos, “considerando a possibilidade de que existam assentamentos com estruturas precárias já consolidados e, em consequência, que seus assentados não tenham suas necessidades básicas e essenciais para uma vida digna atendidas.”
Para repercutir a importância e o contexto em que esse documento é publicado, o Brasil de Fato conversou com a agricultora Antônia Ivoneide, integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e assentada no Ceará.
O que é um assentamento consolidado?
A Constituição Federal de 1988 afirma que os agricultores precisam de crédito, assistência técnica, condições para comercialização e cooperativismo, mas não especifica o conceito de consolidação de um assentamento.
Essa definição aparece pela primeira vez na Lei 8.629/1993. Segundo o artigo 17, inciso 5º, para um assentamento estar consolidado é preciso que tenham sido implementados créditos de instalação – fomento à construção das casas, por exemplo –, além da outorga do instrumento definitivo de titulação.
“A consolidação do assentamento é a última etapa do assentamento. É quando ele já está estruturado e, portanto, pode seguir com suas próprias pernas”, resume Ivoneide, mais conhecida pelo apelido Neném.
O entendimento foi alterado durante o governo Temer, por meio da Lei 13.465/2017. Com essa mudança, os assentamentos que completaram 15 anos até o dia 1º de junho de 2017 teriam três anos para serem considerados consolidados – a não ser que houvesse uma decisão avaliativa fundamentada pelo Incra.
Nesse caso, os pressupostos do inciso 5º da Lei 8.629/1993 poderiam ser ignorados.
“O TCU agora coloca que, se o Incra já consolidou assentamentos nesse processo, tem que avaliar agora a condição desses assentados”, ressalta a agricultora do Ceará.
Para Ivoneide, o documento do Tribunal reforça uma pressão que o MST já vem fazendo há pelo menos quatro anos. “Esse acórdão é fundamental para que a gente possa agora ficar de olho nos assentamentos já consolidados, cobrando a responsabilidade do Incra.”
Passo a passo
Neném explica que a estruturação de um assentamento “vai desde a ocupação, a reivindicação do processo de vistoria, as avaliações que o Incra faz para imissão de posse, os créditos de instalação, os vários elementos de fomento, e os créditos de investimento do assentamento para garantir o processo produtivo.”
A responsabilidade por todos esses passos é do Incra – exceto o último ponto, que cabe aos bancos, por meio de iniciativas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
“O Incra tem, por obrigação, acompanhar todo esse processo. Daí, a necessidade de se implementar, além do crédito, a assistência técnica. O desenvolvimento de um assentamento passa pelas estruturas que devem ser articuladas pelo Incra, por parcerias com governos de estados e municípios para garantir estradas, acesso à saúde e à educação. Tudo isso para viabilizar o assentamento do ponto de vista econômico e social”, diz a assentada.
Ao final desse processo, ocorre a titulação. Primeiro, provisória, por meio de um Contrato de Concessão de Uso (CCU), e depois definitiva. Esta pode ser um título de domínio – com estrutura privada, em que o assentado paga e pode ter a propriedade da terra – ou uma Concessão de Direito Real de Uso (CRDU).
A CDRU transfere a posse definitiva da área ao assentado, com direito a herança, por exemplo, mas sua condição continua sendo a de beneficiário da reforma agrária. Nesse caso, a posse é garantida de forma definitiva, mas a propriedade não.
Na prática
A Lei 13.465/2017, que estabeleceu a consolidação “por decurso de tempo”, contribuiu para a desresponsabilização do Incra e desprezou a realidade dos assentamentos no Brasil, segundo Ivoneide.
“É um problema sério, porque a maioria dos assentamentos que completaram 15 anos não têm as estruturas necessárias para caminhar com os próprios pés. O meu assentamento, que é de 2011, não recebeu nem o crédito de instalação completo. Só recebeu a primeira parte do fomento e o crédito habitacional. Nunca houve um processo de assistência técnica”, relata.
“Boa parte dos assentamentos de 2012 para cá tiveram dificuldade com o processo da assistência técnica. Porque o próprio TCU criou acórdãos que foram cancelando processos de atuação dos assentamentos, impedindo o Incra que fazer novos procedimentos”, completa a agricultora.
Sob governo Bolsonaro, Neném afirma que o Incra se dedica basicamente à titulação das terras, sem promover desapropriações e sem garantir os demais passos da estruturação de um assentamento.
“Ultimamente, percebemos o interesse do Incra de ‘se livrar’ dos assentados. Desde o golpe, há um processo de redução do papel do Estado na articulação das políticas públicas, e na reforma agrária também vemos isso. Muitos técnicos do Incra estão se aposentando, e o órgão vai se enfraquecendo se não há novos concursos”, lamenta.
“Quando os assentamentos passam a ser considerados consolidados após completarem 15 anos, o Incra se livra da responsabilidade de acompanhá-los”, finaliza a dirigente.
O Brasil de Fato entrou em contato com o Incra para comentar o acórdão e responder às afirmações da dirigente do MST, mas não houve retorno até o momento.
Edição: Vivian Virissimo