Desde a revolta social iniciada em 18 de outubro de 2019, o Chile vive um processo de mudança política e social impulsionado pelos movimentos sociais e pelos cidadãos e cidadãs em geral. É uma resposta à crise de representatividade nos poderes institucionais e ao mal-estar social dos setores populares.
Em 15 e 16 de maio de 2021, o país viveu um processo eleitoral histórico, escolhendo representantes de governos locais e regionais – prefeitos/as, vereadores/as, governadores/as – e seus representantes para a Convenção Constitucional. A grande surpresa da jornada eleitoral foi a vitória dos setores da esquerda, progressistas e independentes. A convenção responsável por escrever a nova Constituição estará composta, aproximadamente, por 80% por setores críticos ao modelo atual.
Antecedentes da revolta
A revolta social que ocorreu no Chile em 2019 foi um momento de explosão de um acúmulo de raiva e frustração após décadas de gestão neoliberal, marcada por grandes desigualdades e políticas de criminalização dos movimentos sociais. A precarização da vida e a pobreza também são alguns dos fatores que levaram a essa revolta. O governo de Piñera intensificou a situação de desigualdade. A tentativa de aumentar o valor do transporte coletivo foi o ponto de inflexão que desatou um mal-estar acumulado por décadas.
Desde o início do ano 2000, existem movimentos sociais separados, como o movimento estudantil, o movimento feminista, o movimento No+ AFP [Não mais AFP][1], que propunham respostas a problemas sociais estruturais. Ao mesmo tempo, embora de forma mais “silenciosa”, foram articuladas várias organizações territoriais e locais que permitiram fortalecer o tecido social e alcançar o cenário atual de mobilização social.
Em maio de 2017, o Chile viveu uma “onda feminista”, que expôs o grande trabalho do movimento feminista no país. Graças à mobilização das estudantes secundaristas e universitárias, que ocuparam escolas e centros de ensino, a agenda pública foi tensionada com questões que até então não tinham sido abordadas, como a violência nas instituições educacionais, a violência de gênero nos territórios e a falta de avanços no enfrentamento a essas questões. Ao mesmo tempo, no sul do Chile, o Wallmapu[2] continuou sendo militarizado, tensionando a resistência Mapuche e a recuperação de territórios originários.
A articulação silenciosa nos territórios e nos movimentos sociais foi sendo visibilizada graças às redes sociais e experiências de comunicação locais e comunitárias, já que esses temas não entravam na agenda das notícias. A mobilização de outubro de 2019 foi acompanhada de um processo de organização em assembleias, coletivos, praças e conselhos populares (os chamados cabildos). Isso permitiu que os territórios debatessem a fundo os problemas sofridos no Chile. Assim, determinaram que a Constituição pensada, redigida e aprovada na ditadura era o principal mecanismo de sustentação das desigualdades. A Carta Magna de Pinochet tinha definido que o Estado chileno é subsidiário e não garantidor de direitos.
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Depois de todo esse processo, a pandemia evidenciou que, sem organização social e popular, é muito difícil sobreviver dentro deste sistema. Por isso, as organizações territoriais formulam uma visão de qual futuro queremos para as mulheres e para o país. Graças ao levante popular, atualmente há uma diversidade de formas de organização – redes, coletivos, conselhos populares, cozinhas comunitárias – que têm em comum uma leitura crítica sobre o Estado. O processo tem sido um retorno à reconstrução de um tecido social que por anos foi desmontado.
Um balanço popular da votação
O mecanismo da Convenção realizada neste mês de maio teve quatro elementos centrais: paridade de gênero, cadeiras reservadas para os povos indígenas, a folha em branco (ou seja, a redação da Constituição não parte de nenhum artigo previamente escrito) e a votação por maioria qualificada (os acordos precisam ter ⅔ dos votos). Os resultados obtidos na eleição mostram que a direita nem sequer é uma força política dentro da convenção, uma vez que obteve 37 cadeiras (24% dos votos), menos do que o ⅓ necessário para enfrentar as propostas de seus oponentes. A direita terá uma capacidade de incidência mínima, e é provável que as forças progressistas não tenham sequer o desafio de negociar votos com ela.
Entre os setores progressistas, há nuances e diferentes trajetórias políticas, mas todos concordam em negar o modelo da direita. Por outro lado, “não ser de direita” não significa que as propostas de Constituição estejam de mãos dadas com questões como o aborto livre, mudanças nas leis de imigração ou na criminalização dos movimentos. Os setores da esquerda terão que chegar a um acordo sobre alguns pontos, respeitando e integrando os acúmulos do feminismo, das diversidades, dos povos originários e migrantes.
O momento é decisivo porque, quando for realizada a convocação para a composição da Convenção, dentro de aproximadamente um mês, serão estabelecidos os mecanismos para o seu funcionamento. Este 76% eleito pela esquerda e forças progressistas podem tomar as rédeas e o controle da convenção e estabelecer seus próprios critérios de mandato.
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Dentro da Convenção, há integrantes dos povos originários, eleitos com cadeiras reservadas, como a Machi[3] Francisca Linconao. Ela é uma das pessoas criminalizadas pelo Estado chileno e agora vai redigir a nova Constituição. E o fará junto com outras mulheres mapuches, que estão engajadas em uma luta histórica pela recuperação de terras, pela plurinacionalidade[4] e pela autodeterminação.
A maior surpresa nestas eleições foi a “Lista do Povo”, que obteve o grande resultado de 27 cadeiras com muito pouco dinheiro de campanha em comparação com os milhões de pesos investidos pela direita. A “Lista do Povo” reúne várias pessoas independentes provenientes de territórios de todo o país. Os grupos independentes foram questionados e criticados pela política hegemônica, mas hoje a Convenção é composta por quase 70% de independentes, que trabalham em suas comunidades e conhecem a realidade do Chile. São mulheres mapuches, indígenas, ambientalistas, doentes crônicos, feministas, trabalhadoras e trabalhadores.
De acordo com dados do Serviço Eleitoral do Chile, apenas 41% das pessoas aptas a votar participaram dessas eleições. Entre os fatores que explicam a baixa participação estão a baixa divulgação do processo, as mudanças de última hora nos locais de votação e a falta de crença em mudanças através de mecanismos institucionais. O trabalho social e político fora das margens legalistas é tão válido e necessário quanto aquele realizado para alterar a Constituição.
Onde queremos chegar
Com essas eleições, o processo histórico de mudança no Chile está avançando. A partir das bases, associações de moradoras/es, assembleias e territórios populares, as organizações estarão ativas para observar e monitorar o processo político institucional, que servirá para reforçar o trabalho popular. Há uma tarefa complexa de monitorar e fortalecer as propostas das e dos membros da convenção e garantir um amplo acesso à informação.
Não é necessário ser um advogado constitucionalista para saber quais mudanças o Chile precisa. É o povo quem sabe disso. Espera-se que esta nova Constituição melhore substancialmente a qualidade de vida do povo no futuro, quando o Chile voltar a garantir direitos básicos como água, educação pública, saúde, moradia, territórios livres de zonas de sacrifício e violência. A partir do feminismo, há reivindicações de mudanças profundas para garantir uma vida livre de violência, um sistema de cuidado comunitário, acesso à saúde sexual e reprodutiva. No processo, a nova Constituição deve alcançar a plurinacionalidade e recuperar as riquezas naturais e os bens públicos básicos retirados por este Chile neoliberal e extrativista.
O momento que o Chile vive se deve à luta constante das pessoas nas ruas e comunidades por mudanças reais e estruturais que coloquem um fim à precariedade da vida. Não podemos esquecer que há pessoas mortas, violentadas, mutiladas e presas. Há prisioneiros políticos da revolta que nem sequer tiveram um julgamento justo. A liberdade deles faz parte do papel da transformação democrática.
A criação de uma nova Constituição pode ser a oportunidade de formular um sistema político mais participativo e democrático mais participativo. No Chile, tudo ainda está por ser feito, e enfrentar isso é uma tarefa para as pessoas que vivem e sustentam os territórios.
*Danixa Navarro e Rocío Alorda fazem parte da Marcha Mundial das Mulheres no Chile. Danixa é professora e mestre em Teorias de Gênero e Cultura. Rocío Alorda é jornalista e mestre em Comunicação Política.
Notas:
[1] No+ AFP [Não mais AFP] é um movimento social chileno que tem como objetivo central acabar com o atual sistema de aposentadorias. AFP é a sigla para referir-se ao sistema de Administração de Fundos de Pensão.
[2] Wallmapu significa, em Mapudungun, “território circundante”. É a denominação Mapuche para o amplo território no qual o Chile está localizado.
[3] Machi é a forma como as comunidades Mapuche chamam as autoridades religiosas, curandeiras/os e conselheiras/os, que são também lideranças na defesa de seu povo, cultura e territórios.
[4] “Plurinacional” é a caracterização de um espaço (neste caso, do Estado) onde convivem, com respeito, reconhecimento e interculturalidade, diversos povos, nações e etnias. Inserir a plurinacionalidade na nova Constituição é uma reivindicação para visibilizar os diversos povos que vivem no território, em contraposição a uma única e restrita identidade nacional.