Nesta quinta-feira (27), data em que se celebra o Dia Nacional da Mata Atlântica, um conjunto de pesquisadores se reúne virtualmente no “Simpósio Mata Atlântica: desafios para a conservação e interfaces da biodiversidade e saúde”.
Organizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e parceiros, o evento espelha a preocupação dos especialistas da área de meio ambiente com a situação do bioma, que tem 1.989 espécies de fauna e flora ameaçadas de extinção. O número corresponde a 25% dessa rica faixa de floresta tropical que abraça diferentes regiões da costa brasileira.
Os dados, publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2020, expõem o contraste entre o cenário atual do meio ambiente do país e a realidade observada em décadas anteriores, quando o contexto nacional chamou a atenção do mundo em termos de preservação da variedade de espécies aqui catalogadas.
“O país foi líder em conservação da biodiversidade ao longo de parte dos anos 2000 e da década de 2010”, resgata o zoólogo Ricardo Moratelli, pesquisador da Fiocruz e organizador do simpósio.
Estatísticas mais recentes, estas do Atlas da Mata Atlântica, mostram, por exemplo, que o desmatamento também aumenta a passos largos no bioma, que viu o problema crescer entre 2019 e 2020 em dez dos 17 estados alcançados por essa faixa ambiental. São Paulo e Espírito Santo têm situações ainda mais alarmantes: os dois tiveram, no período, uma degradação que ultrapassa a marca dos 400%.
Em conversa com o Brasil de Fato, Moratelli destacou a preocupação dos cientistas brasileiros com esse panorama e ressaltou diferentes pontos relacionados ao tema.
Compõem o roteiro da conversa questões como os estudos que classificam o grau de risco a que estão submetidas as espécies, as reações da natureza à intervenção humana, a falta de investimentos para se turbinar as pesquisas sobre a biodiversidade brasileira e ainda a importância de se eleger representantes políticos que defendam o patrimônio ambiental do país.
Confira a seguir a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: O simpósio vem num momento em que as preocupações com a situação da Mata Atlântica se ampliam no país. O IBGE aponta que esse é o bioma brasileiro com o maior numero de espécies ameaçadas de extinção. Das mais de 3 mil espécies avaliadas pelos pesquisadores em solo nacional, quase 2 mil eram animais e plantas da Mata Atlântica. Os dados foram publicados em 2020, mas são referentes ao ano de 2014. O que tem acontecido de preocupante de lá pra cá?
Ricardo Moratelli: Apesar de nós sempre escutarmos [falar] em uma grande variedade de problemas ambientais relacionados à conservação ambiental no Brasil, o país foi líder em conservação da biodiversidade ao longo de parte dos anos 2000 e da década de 2010.
Mais recentemente, pouco depois desse relatório do IBGE, houve uma mudança nas orientações políticas a partir do governo federal que facilitaram muito o aumento da perda de hábitats.
Houve redução também de projetos relacionados a áreas degradadas. Tudo isso favoreceu uma maior redução em relação ao que vinha acontecendo no bioma. Então, se perdeu muito mais floresta, mais hábitats naturais da Mata Atlântica nos últimos anos do que ao longo de boa parte dos anos 2000 e 2010.
O IBGE mostra que a Mata Atlântica não só tem o maior número absoluto de espécies ameaçadas, como tem também o maior numero proporcional: são 25% das espécies do bioma nessa situação. Quais os problemas que se criam a partir da redução da biodiversidade em um determinado ambiente?
A gente tem que entender que existe um equilíbrio entre as populações de animais, plantas e microrganismos que compõem o meio ambiente.
Quando esse equilíbrio é perdido pela retirada de parte de uma floresta, pela redução de uma determinada espécie de planta ou animal, cria-se um desequilíbrio que pode ter consequências tanto na conservação propriamente dita dessas espécies – de animais que são eventualmente caçados ou de árvores que são cortadas – como também podem ter impactos na saúde humana.
Eventualmente, existem casos de desmatamentos levarem à emergência, ao surgimento de novas doenças, de a caça levar ao surgimento de novas doenças. Um exemplo disso é o HIV/Aids, que surge a partir de uma doença de primatas e o microrganismo causador salta para o ser humano a partir da caça de chimpanzés.
Lá no início do século XX, por volta de 1910, na África, foi um evento de caça de chimpanzés que levou ao salto de um agente infeccioso que causava uma doença imunológica em primatas e saltou para o ser humano, que é outro primata, daí essa doença se dispersou para o mundo inteiro.
Ou seja, mexeu com a natureza, ela responde...
Exatamente. E há outros casos similares, como o da dengue, as adaptações de mosquitos aos ambientes modificados pelo ser humano. O ebola sempre foi uma doença que ficou muito restrita a algumas partes da África Central, com toda a modificação ambiental que se deu no Oeste da África nas últimas décadas.
Em 2013, iniciou-se uma epidemia de ebola que se dispersou para vários países, varreu boa parte de Guiné, Libéria e Serra Leoa e chegou a matar mais de 11 mil pessoas. É outro exemplo dos impactos na saúde que as alterações ambientais em larga escala podem causar.
A gente vê que os estudos costumam classificar os biomas em graus de risco. A Mata Atlântica tem quase mil espécies em situação de “perigo”, mais de 400 enquadradas como “criticamente em perigo”, outras tantas que são chamadas de “vulneráveis” e por aí vai. Por que é importante estabelecer essa diferenciação?
É importante porque a gente precisa entender claramente qual é a situação atual dessas populações de animais e plantas. Quando a gente classifica uma determinada espécie de uma região como “criticamente em perigo”, significa que ela provavelmente tem uma distribuição geográfica razoavelmente restrita a uma área que vem sofrendo forte pressão do ser humano – ou para transformação em pasto ou para transformação em área pra agricultura ou por questões de grandes empreendimentos.
Então, existe um risco muito grande de aquela população naquela localidade se extinguir e, se ela se extinguir, como a distribuição dela é muito restrita, pode acontecer de ela sumir do planeta.
Se a gente pensar numa população que tenha uma distribuição muito restrita na região do arco do desmatamento que pega Mato Grosso, por exemplo, uma região com forte pressão humana, com grandes áreas sendo devastadas o tempo inteiro, essa população corre o sério risco de se extinguir.
A partir dessas classificações, são criadas estratégias de conservação das espécies, e a gente precisa priorizar as que estão mais ameaçadas em relação às outras. É basicamente isso, uma maneira que temos de priorizar aquelas que aparentemente têm mais risco.
Mas é muito importante destacar que a gente tem esse conhecimento para as espécies que a gente conhece melhor. Existe uma série de espécies das quais a gente não tem informação nenhuma em relação às condições das suas populações, e aí se incluem espécies que são importantes para alimentação humana a partir da pesca.
Uma série de populações de peixes pode se extinguir brevemente. O mesmo serve para algumas populações de animais que são muito caçadas, apesar de a caça ser considerada ilegal no Brasil para fauna nativa, enfim. Mas [a categorização] serve para a gente classificar as espécies que vamos priorizar [em termos de] esforços para a sua conservação.
O que falta para que os nossos especialistas possam conhecer melhor as espécies sobre as quais não se tem tanta informação ainda no país? Falta investimento em pesquisas, por exemplo?
Falta muito investimento em ciência e tecnologia. Nós tivemos um momento espetacular nessa área no Brasil entre 2004 e 2014, que foi uma década de crescimento científico e tecnológico sem precedentes na história do país e nós chegamos a parear em termos de produção científica com países que sempre tiveram uma tradição muito forte na ciência.
Pareamos também investimentos, considerando o percentual do PIB [Produto Interno Bruto] investido na área, e chegamos a deslumbrar um aumento significativo que nos permitiu nos colocarmos no primeiro mundo da ciência. Cientistas de qualidade nós temos no país. O que falta é investimento, e isso vem piorando muito nos dois últimos anos.
Eu acho que todos têm acompanhado, a partir das matérias de rádio e televisão. A mídia como um todo vem mostrando quanto vem se tirando de recursos das universidades, das instituições de pesquisa.
E cada vez mais a gente vem perdendo bolsas de pesquisa e corpo de pesquisadores para outros países. Está ocorrendo uma fuga de pesquisadores porque não se tem mais condições de trabalhar aqui no país. Então, a situação hoje é muito difícil para quem faz ciência no Brasil.
Ainda sobre a extinção das espécies, o que acontece quando vocês constatam que uma delas está ameaçada? Há algum processo de reintrodução desses animais?
Isso depende da espécie. Quando eu falei que a gente cria critérios para poder classificar as espécies de acordo com o nível de ameaça que elas vêm sofrendo, entra aí também uma avaliação dos serviços ecossistêmicos que elas prestam.
Existem espécies que são polinizadoras, outras que são dispersoras de sementes, outras que são consumidoras de insetos, e a gente precisa levar isso em consideração.
Obviamente, como isso tem uma importância econômica, a gente acaba priorizando essas espécies que são ecologicamente muito mais importantes. Existem planos de recuperação de espécies.
Só a título de exemplo, a tequila vem de uma planta que é polinizada exclusivamente por morcegos, isso numa região razoavelmente restrita do México. Num determinado momento, as populações de morcego diminuíram muito nessa região, essas plantas ficaram ameaçadas e, consequentemente, a produção de tequila também.
Colocou-se, então, um grande esforço na recuperação dessas populações de morcegos para que as populações de plantas pudessem ser mantidas e todo o negócio que envolve a tequila prosperasse. E, geralmente, o que se faz são estudos com biólogos e outros profissionais, como geógrafos, para criar planos de conservação para espécies em particular ou para biomas.
Pode-se criar uma unidade de conservação, pode-se criar uma unidade que permita a exploração comercial da natureza, mas com um cuidado muito grande com a conservação.
Pode-se também desenvolver planos específicos para conservação de uma espécie em particular, como é o caso do mico-leão-dourado aqui na Mata Atlântica. Por volta das décadas de 1960, 1970, era uma espécie muito ameaçada, com alguns poucos indivíduos, e hoje já é uma população que se recuperou muito bem e possui alguns milhares de indivíduos. Então, há diferentes estratégias.
Tem algum outro caminho além desses que você mencionou pra que se possa trabalhar, no Brasil, uma restauração da nossa Mata Atlântica? O que o país pode e deveria fazer pelo bioma diante do cenário que se tem hoje?
Sem dúvida alguma acho que o primeiro passo é a gente tomar mais cuidado com a eleição dos nossos representantes nas esferas federal, estadual e municipal e entender que a gente precisa de uma bancada ambiental forte, que não vá deixar acontecer coisas como as que estão acontecendo agora – a flexibilização das leis ambientais, sem dúvida, vai ter impacto muito grande na conservação da Mata Atlântica e dos outros biomas do Brasil.
O passo inicial é esse. Obviamente, também passa pela educação ambiental, mas a escolha de governantes que tenham como preocupação o meio ambiente talvez seja o marco divisor para que a gente possa preservar esses biomas e aproveitar ao máximo tudo o que eles têm a nos oferecer nos diferentes aspectos da qualidade de vida do ser humano.
Edição: Vivian Virissimo