Um dos maiores produtores e consumidores de carne no mundo, a Argentina tem suas exportações do produto suspensas até o dia 19 de junho. Com caráter temporário, a decisão do governo argentino é uma medida contundente em resposta à detecção de diversas irregularidades de frigoríficos exportadores, que têm provocado um aumento sistemático do preço dos cortes de carne.
Em uma cultura onde a carne faz parte fundamental do prato diário, os cortes populares têm sido cada vez menos acessíveis para a população. O cenário não é exatamente novo. A entrada da China como comprador principal da carne argentina tem impulsionado o fluxo de exportações, o que se soma aos esquemas investigados pelo governo que inclui empresas fantasmas, fuga de capitais e pressão dos grandes frigoríficos para elevar o preço no mercado interno.
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O setor reagiu instantaneamente à restrição: empresas agropecuárias que conformam a chamada Mesa de Enlace se uniram em repúdio à medida do governo e convocaram uma greve em conjunto, que já completa uma semana. O Mercado de Liniers, o centro de leilão de gado mais importante do país, está desabastecido, e já se identificam falta de cortes no mercado.
Produtores descuidam o mercado interno
O ministro de Desenvolvimento Produtivo, Matías Kulfas, anunciou que a medida seria retirada caso fosse possível chegar a um acordo com o setor produtivo. "O fechamento é temporário e pretende evitar práticas especulativas e ilegais, além de gerar mecanismos com diferentes setores dessa complexa cadeia produtiva de exportadores, frigoríficos, mercado interno, intermediário etc.", declarou em entrevista à rádio AM 750. "A proposta é garantir o desenvolvimento harmônico tanto da exportação quanto do mercado interno."
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O custo de vida aumentou 46,3% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (Indec). Seguindo o mesmo comparativo, só o preço da carne sofreu um aumento de 65,3%: em abril, a média já alcançava $630 pesos argentinos (R$35), valor 3,4% mais alto que em março e 65,3% mais alto que em abril do ano passado. Um dos cortes preferidos no paladar argentino, a chamada "tira de assado" (costela bovina cortada em fatias) foi o que mais sofreu aumentos, com 81,5% de variação anual. Custa, atualmente, cerca de $636,56 o quilo.
"É uma loucura que os cortes que mais consumimos aqui estejam inacessíveis, e que não se consomem em outras lugares", aponta Miguel Saavedra, um dos trabalhadores da Frigocarne, um frigorífico recuperado que, como muitas cooperativas semelhantes, trabalha apenas com o impactado mercado interno.
"Para as cooperativas também sai mais caro comprar um animal e vender, porque os produtores de gado produzem em peso e apontam à exportação, vendendo a dólar ou euros", afirma, destacando como o foco dos exportadores no mercado internacional não afeta apenas os consumidores, mas também o setor produtivo autogestionado.
Os números de exportação, mencionados por Kulfas ao detalhar os motivos da medida restritiva e temporária, também evidenciam o descuido com o mercado interno. "Temos um estancamento na produção de carne bovina. Há 50 anos, produzíamos entre 2 e 3 milhões de toneladas de carne, e hoje produzimos o mesmo, com o dobro da população", afirma Kulfas. Para o ministro, é essencial aumentar a produção, e uma maneira efetiva de fazê-lo é cuidar do mercado interno, movimento contrário ao que vêm traçando os grandes produtores.
Por que o preço da carne argentina aumenta?
O aumento do valor dos cortes de carne em território nacional é desproporcional ao poder aquisitivo da população. É também uma herança dos anos macristas: o ex-presidente Mauricio Macri desregulou o setor, e a falta de controles permitiu práticas ilícitas da indústria de carne bovina. Além de representar um menor acesso da população a esse tipo de alimento – e apesar da problemática da inflação que persiste no país há décadas –, as práticas ilegais têm acentuado o aumento de preços da carne e pressionado o mercado interno.
Héctor Polino, diretor da organização Consumidores Livres, destaca duas explicações para o aumento dos preços da carne argentina: a dolarização e a evasão fiscal.
"Aproximadamente 50% da carne produzida é exportada, principalmente para a China, mas também para Alemanha, Estados Unidos, Israel, Países Baixos e Chile", afirma Polino. "Logo, os exportadores implementam os valores internacionais da carne no mercado interno, o que é um verdadeiro desatino."
"Outra razão são as divisas não liquidadas, com manobras efetuadas através de empresas fantasmas no Uruguai, subfaturando a mercadoria exportada à China. Com a diferença em dólares, esses exportadores fraudulentos compram as vacas no Mercado de Liniers a um preço mais alto e esquentam o mercado interno, forçando o aumento do preço de todos os outros animais", explica.
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Para Polino, a medida temporária expõe um setor que tem trabalhado sem regras. "É preciso dissociar os preços do mercado interno com os do mercado internacional, estabelecendo uma cota de exportação ou aumentando os impostos", ressalta, sobre uma solução possível a longo prazo.
Além da baixa no consumo de carne, a Argentina tem registrado queda no consumo de leite, frutas e verduras, enquanto aumentam o consumo de polenta e farinhas, como aponta a organização Consumidores Livres.
"Nutricionistas têm advertido para os possíveis problemas de desenvolvimento intelectual em consequência da má alimentação na infância. Assim, um país que produz e exporta alimentos para mais de 400 milhões de pessoas no mundo pode ter uma parte importante da sua juventude com problemas de desenvolvimento como consequência dos aumentos especulativos do mercado", aponta Polino.
A expectativa do governo é chegar a um acordo com o setor produtivo exportador, mas, por enquanto, não houve consenso nas tentativas de diálogo.
Edição: Vinícius Segalla