Ao lado da neta, Priscila Gomes de Oliveira constrói o barraco de lona. Desempregada, a auxiliar de faxina de 34 anos, tem hoje como única fonte de renda um Auxílio Emergencial de R$375.
“Você compra o básico do básico. Uma mistura, um leite, se der para comprar um Danone para a criança, nós compra, se não der, a gente não pode fazer nada. A gente está vivendo do básico. Fazia todas as refeições, hoje em dia, não faz uma direito”, afirma a jovem avó.
Com duas crianças para alimentar, Shirley da Silva Melo de Souza recebe o mesmo valor e tem a mesma dificuldade.
“O valor do auxílio emergencial ter caído tanto, acabou tirando muito das crianças. Ficou literalmente quase só o arroz e o feijão, quando tem feijão”, explica a mãe solo, que trabalhava como operadora de telemarketing antes de ser demitida em 2020.
As duas mães resistem à fome e ao desemprego na ocupação Carolina Maria de Jesus, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), na Zona Leste de São Paulo.
O espaço é um retrato do agravamento da vulnerabilidade das famílias brasileiras com a redução do Auxílio Emergencial. O benefício foi retomado pelo Governo Federal em 6 de abril, após 96 dias de interrupção. Mas a quantia é ínfima, e varia de R$ 150 a R$ 375 mensais.
Crescimento populacional
O terreno, que fica no Jardim Iguatemi, foi ocupado na madrugada do dia 15 de maio por 600 famílias. Dezoito dias mais tarde, a área já é habitada por mais de 3000 núcleos familiares.
Gilvânia Reis Gonçalves, uma das coordenadoras da ocupação, afirma que ao acolher as famílias, o MTST está fazendo um papel que caberia ao poder público.
“Todos os dias chegam novas famílias, procurando espaço, procurando onde que eu faço meu barraco. 'Eu estou desempregada, eu não consigo pagar o aluguel, eu estou morando de favor, eu estou escolhendo entre comer e pagar o aluguel'. Isso é todos os dias. E é multidões, é dezenas de famílias chegando nessas situações”, explica.
Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mais da metade da população brasileira não tem comida suficiente ou passa fome durante a pandemia.
Já o número de desempregados no país, alcança hoje 14,4 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Criada pelo MTST no local, uma cozinha comunitária é o que garante a segurança alimentar das milhares de famílias. No espaço, que também alimenta a população vulnerável do entorno, é servido em torno de mil refeições por dia.
“Nós se alimenta com os companheiros aqui. Hoje, já tinha passado. Mas geralmente, nós almoça aqui, janta aqui, e já vai pra casa alimentado”, afirma Kelly Cristina Chagas, em frente ao barraco onde dorme com os seis filhos.
A trabalhadora autônoma, que tenta retomar a confecção de canecas e camisetas personalizadas, não recebeu o auxílio emergencial em nenhum momento desde o início da crise.
“A gente coloca o colchãozinho pra lá, e dorme todo mundo de conjuntinho”, conta Chagas.
Esperança às famílias
O nome da ocupação, Maria Carolina de Jesus, é uma homenagem à escritora homônima que publicou "Quarto de Despejo: Diário de uma favelada" - um retrato negro e periférico sobre a vida nos subúrbios brasileiros, entre 1914 e 1977.
Na última semana, uma liminar que pedia a reintegração de posse do terreno foi negada pela pela justiça de São Paulo e deu esperança às famílias.
A decisão da 4º Vara Cível de Itaquera estabelece que até o final de junho, a autora da ação, a empresa Telen Administração de Bens, prove que a área tinha alguma função social.
O abandono anterior do terreno foi reconhecido pelo Poder Público Municipal. Em 2015, uma notificação emitida pela Prefeitura de São Paulo exigiu que, no prazo de um ano, fosse apresentado um Projeto de Parcelamento, Edificação ou Utilização do Imóvel (PEUC).
Segundo o MTST, o documento só é solicitado pelo poder público quando há “flagrante descumprimento da função social”.
Na época, a ausência do documento motivou a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), a solicitar a desapropriação da área. O processo, porém, foi arquivado em 2017.
“Cada dia dentro da ocupação é uma vitória, porque a gente consegue comprovar que essa luta é legítima. São milhares e milhares de famílias aqui com a gente, denunciando que não existe política pública para moradia, não existe programa social. Foi tudo cortado pelo Governo Bolsonaro”, conta Cláudia Rosane Garcez, também organizadora do espaço.
Em 2020, o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), teve o menor orçamento registrado desde o ano de sua criação, em 2009, conforme levantado pelo Brasil de Fato.
Já o programa substituto, batizado pelo Governo Federal de Casa Verde e Amarela, não atende a população de renda mais baixa, segundo os movimentos de moradia.
Área destinada à moradia popular
O terreno está em uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), e segundo o Plano Diretor da Cidade, deveria ser destinado à construção de moradias populares, suprindo o déficit habitacional na região.
“O juiz não concedeu a liminar para o dono do terreno porque ele tem que provar que o terreno tinha função social, que ele estava murado, que ele estava pagando impostos, coisa que ele não estava cumprindo. O direito à propriedade privada não se sobressai ao direito das pessoas de terem uma moradia”, analisa Garcez.
Segundo consta na certidão de débitos municipais, não há recolhimento de IPTU relacionado ao imóvel desde 2006. A dívida já acumula quase 3 milhões de reais.
Além disso, a área não tem matrícula, nem proprietário, o que existe é uma transcrição antiga, que deriva do início do século passado, segundo o MTST. A confusão em relação à posse se expressa no próprio mapeamento da Prefeitura sobre a área.
Apesar da empresa Telen ter solicitado a reintegração de posse, a titularidade e responsabilidade fiscal do imóvel ocupado é da JJM Administração e Empreendimentos, outra empresa do ramo imobiliário.
O registro pode ser visto na plataforma Geosampa, mapa digital da cidade organizado pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento.
“Quando a gente entra nessa disputa, é uma disputa legítima. E a gente vai lutar por esse espaço até o fim, porque são milhares de famílias”, conta Garcez.
Histórico de conflito
O terreno estava em conflito entre duas famílias desde os anos 1990. A família Ikeuti, de imigrantes japoneses, ganhou a causa e teve a posse reconhecida judicialmente em 2016.
No processo, os advogados dos Ikeuti são os próprios donos da Telen, que hoje reivindicam a reintegração de posse.
A Telen recebeu o direito sobre o imóvel por meio de um contrato de compra e venda firmado com a família Ikeuti, em 2017, que hoje é usado pela empresa como título de propriedade - o que é ilegal, segundo o MTST.
É com base no documento firmado com os Ikeuti, que a Telen pede hoje a ação possessória. Em tese, como elemento central, o juiz quer saber se as famílias tiveram que transpor um muro ou alguma cerca para adentrar a área.
A Telen alega que o terreno era cercado e ocupado por um suposto caseiro, que zelava pela área de 62 000m². Já, o MTST esclarece que o terreno vem sendo usado para descarte ilegal de lixo desde 2004, quando foi iniciado o mapeamento sobre a área.
“Hoje eu entendo que o movimento protege a gente. O que eu vejo é que quem não tá na luta, venha lutar. E quem já está lutando, continue perseverando, porque a vitória é certa. Toda luta tem sua conquista”, finaliza Shirley.
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com a empresa Telen Empreendimentos Imobiliários e com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). A reportagem será atualizada assim que houver respostas.
Edição: Isa Chedid