É toda uma continuidade de uma necropolítica
Na semana em que o Brasil superou o número de 470 mil mortos pela covid-19, duas promessas foram destaque: o governador de São Paulo, João Dória, afirmou que vai vacinar toda a população adulta do estado até final de outubro, e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse que o governo vai finalizar a campanha de imunização até dezembro.
As duas previsões foram anunciadas na última quarta-feira (2). Dois dias antes, no entanto, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, afirmou que é "muito otimista" a ideia de vacinação de todas as pessoas acima de 18 anos até o fim do ano.
Ele prevê uma quantia inferior de cidadãos vacinados no prazo estipulado: "A julgar pelo ritmo, isso não vai acontecer nessa velocidade em que está prevista e, possivelmente, nós vamos conseguir terminar a vacinação de 50 a 60 milhões de pessoas, que é o que está previsto aí nessa fase inicial do Programa Nacional de Imunização (PNI), na minha previsão, no final de setembro a início de outubro. Antes disso, não teremos essa possibilidade".
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O número não representa nem metade da população brasileira. Segundo a plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford, menos de 25 milhões de pessoas foram vacinadas até agora no Brasil. Pouco mais de 10% das cidadãs e cidadãos receberam as duas doses.
Dimas Covas foi além, ressaltou que "o ritmo de vacinação nunca foi suficiente, em nenhum momento, para justificar uma aceleração muito grande". Para o diretor do Butantan, a ideia não é factível, mesmo se houver aumento na disponibilidade vacinas.
"Todo mundo fala que o ministério da Saúde poderia conseguir inocular 2 ou 3 milhões (de doses) por dia, mas isso nunca aconteceu, isso é muito difícil, a logística dessa vacina não é tão simples assim", completou ele.
Em conversa com o podcast A covid-19 na Semana (ouça o áudio completo abaixo do título desta matéria), a médica Lucy Rivka, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, afirma que na eventualidade de o Brasil completar a vacinação este ano, será mérito do Sistema Único de Saúde (SUS).
"A gente tem (capacidade) porque o SUS, apesar de todos os problemas de desfinanciamento e de todo o desmonte que vem sofrendo, ainda é o maior sistema de saúde do mundo, que tem essa capacidade de vacinar", explica ela.
A médica aponta que a desorganização do processo se reafirma todos os dias. Ela se traduz em problemas no acesso para os povos tradicionais, casos de pessoas furando a fila das prioridades, falsos atestados de comorbidades, armazenamento inadequado e até roubos. Para Rivká, essas inconsistências vão continuar trazendo problemas.
"A gente já passou do início. Só isso já mostra que não é uma desorganização inicial. Sim, está tendo consequência e vai trazer mais ainda", alerta. "É toda uma continuidade de uma necropolítica", complementa.
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No mesmo pronunciamento em que prometeu vacina a todos os brasileiros adultos até o fim do ano, Bolsonaro afirmou que o Brasil é o quarto melhor país do mundo no avanço da vacinação.
Ele não explicou, no entanto, que esse número se refere ao total absoluto de pessoas que receberam a primeira dose e não leva em consideração o tamanho da população brasileira. Na conta proporcional, o país não está nem mesmo entre os 60 primeiros.
Os números do governo
Nesta semana, o ministério da Saúde anunciou que o Brasil ultrapassou a marca de 100 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 distribuídas. A previsão de entrega para o mês de junho, que antes era superior a 50 milhões, agora caiu para 40 milhões de doses de imunizantes.
Ainda de acordo com a pasta, já foram encomendadas 600 milhões de doses. A conta, no entanto, inclui vacinas que ainda não foram aprovadas. A notícia boa é que a Fiocruz assinou, na segunda-feira (1), contrato de transferência de tecnologia para produzir nacionalmente os ingredientes da vacina.
Edição: Vinicius Segalla