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Do Olimpo à Lava Jato: Narciso vive

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O que se aspira, neste espaço, é reafirmar a existência dessa Constituição da República, que se presume ativa e até pode ser enxergada como o “Monte do Olimpo” - Webysther / Wikipedia
O mundo antigo é pleno de narrativas que tentam explicar a natureza humana e os comportamentos

Por Marília Lomanto Veloso*

 

Muitas vezes relembro aquele dia

Em que fui despertada a vez primeira

Do meu sono profundo. Sob as folhas

E as flores, muitas vezes meditei:

Quem eu era? Aonde ia? De onde vinha?

Milton (Paraiso Perdido, Livro IV)

 

Thomas Bulfinch popularizou a mitologia espalhando esse modo de conhecimento oral pelos espaços acadêmicos e escolares do mundo. Trata de mitos e deuses, com o laivo de quem se graduou pela Universidade de Haward e foi docente da Boston Latin School.

Tem, portanto, lastro probatório para dar credibilidade às narrativas sobre as divindades do Olimpo que, segundo observa, “não têm mais um só homem que as cultue, entre os vivos”, mas persistem porque “vinculadas às mais notáveis produções da poesia e das belas artes, antigas e modernas”. (A Idade da Fábula, Histórias de deuses e heróis, 1955)

Bulfinnch descreve que o cume do Monte do Olimpo, na Tessália, era o lugar onde moravam os deuses, que desciam para a terra e retornavam ao monte através de uma porta de nuvem guardada pelas Estações, deusas que permitiam a passagem para essas “andanças”.

Quando convocados, esses deuses e as divindades que habitavam “na terra, nas águas e embaixo do mundo”, compareciam ao palácio de Júpiter onde eram tratados os assuntos que interessavam ao céu e à terra.

O mundo antigo é pleno de narrativas que tentam explicar as coisas, a natureza humana e os comportamentos, através de uma linguagem representada por crenças, lendas, deuses, divindades.

Constroem, com isso, a mitologia, os mitos e as histórias que terminam compondo o “imaginário coletivo de um determinado povo”. Para além de importantes para a sociedade, essas narrativas são recontadas para as gerações, pela tradição oral.

De acordo com Thomas Bulfinnch, “nenhuma das lendas da antiguidade tem sido mais comentada que a de Narciso”.

Daniela Diana, em reflexão sobre mitos, lembra o jovem da mitologia grega, símbolo da vaidade, “um dos personagens mitológicos mais citados nas áreas da psicologia, filosofia, letras de música, artes plásticas e literatura”.

“Belo, arrogante e orgulhoso”, despertou a paixão de Eco, ninfa e “amante dos bosques e montes.” Recusou a bela caçadora, mas apaixonou-se pela própria imagem refletida num lago.

Jeremy Holmes, psiquiatra britânico, em abordagem da psicanálise sobre o Narcisismo, aponta a “vigorosa tradução da versão” de Ovídio, de Ted Hughs, revelando “os temas narcísicos do prazer corporal, da inveja, e da dificuldade de saber como o outro realmente se sente”.

Holmes comenta o dilema do narcisista, que vive a ironia de que, não obstante pensar apenas em si mesmo, “nunca se conheça realmente, uma vez que não pode colocar-se do lado de fora, para ver como ele é ‘de verdade’” (Narcisismo, 205, p. 23-25).

A proposta neste espaço não é pautar as encantadoras e palpitantes histórias das divindades que povoaram (e ainda seduzem) o imaginário de todas as gerações.

De modo igual, e porque não é esse o fôlego nem o campo de conhecimento da intervenção, não se ousaria travar debate sobre o impacto real da “lenda” de Narciso na disputa de conceitos e formulações teóricas estabelecidos no trajeto histórico da Psicanálise, que terminaram por provocar severos distúrbios entre Freud, Adler e Jung, seus discípulos (segundo o conceito de narcisismo em Freud e alguns de seus destinos). 

O que se quer, com esse tema, é “provocar” uma reflexão sobre os habitantes do Monte do Olimpo e o “simulacro de Olimpo” onde pensam morar algumas “divindades” que compõem o universo de uma sociedade onde classes oprimidas “subvivem” entre a pobreza e a extrema pobreza, evidenciando a escancarada ausência do Estado e das instituições organizadas no Texto Político de 1988.

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Em seu discurso preambular construiu um Pacto Constituinte “para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional.” (CF 1988, Preâmbulo).

O que se aspira, neste espaço, é reafirmar a existência dessa Constituição da República, que se presume ativa e até pode ser enxergada como o “Monte do Olimpo”.

Mas as divindades, deuses e deusas, legitimamente, são as forças populares, a sociedade plural, diversa, o povo brasileiro brutalizado, agudizado por perdas de vidas evitáveis, soterrado em escombros produzidos pela violência agenciada pelo aparato repressivo e a política genocida de um governo que tripudia, sem escrúpulos, sobre uma prescrição constitucional que assevera um Estado Democrático de Direito fundamentado na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político.

O que se denuncia e espera causar intenso constrangimento é o descompromisso político, ético, social de um aparato que o legislador constituinte elevou ao lugar de “Poder”, de “Função Essencial à Justiça” quando inscreve no artigo 127 que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

A linguagem poética que inspira Milton a “imitar” a história de Narciso e a meditar, “entre folhas e flores”, se indagando: “Quem eu era? Aonde ia? De onde vinha?” parece caber no corpo do Ministério Público, com seu lugar de fala historicamente indefinido.

No mundo antigo, era um observador a serviço do rei para castigar insurretos, manter a prevalência da vontade real. No final da Idade Média, acentua a acusação oficial.

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No Estado Moderno, propicia a aplicação da lei aos réus. No Brasil, se evidenciam a instabilidade constitucional das atribuições e a influência do poder político a determinar qual seu espaço físico-existencial. No colonialismo, se firmava na Casa de Supliciação. Na Constituição do Império (1830), denunciava crimes políticos e policiais.

A Constituição da República, (1892), imprimiu o cunho de judiciário, quando incluiu a instituição dentre os membros do Supremo Tribunal Federal.

A Carta Constitucional de 1934 se limitava à previsão organizacional do Ministério Público por lei federal, enquanto a de 1937 apenas faz alusão ao Procurador Geral da República. No seu percurso histórico, um Ministério Público desconectado de qualquer dos poderes, com título próprio é o que se revela à leitura da Constituição de 1946.

Em 1967, o Ministério Público passou a ocupar sede constitucional no Poder Executivo, mantida em 1969.

A Constituição de 1988 se credencia como marco histórico para o perfil institucional do Ministério Público, por provocar significativas conquistas políticas que atribuem à instituição o caráter de permanência, de órgão imperativo para a democracia e defesa de direitos coletivos e individuais. 

E ainda mais, com possibilidade jurídica de fazer valer os direitos constitucionais garantidos, zelando para que as autoridades cumpram tais imposições. Tanto poder não poderia encontrar recipiente em um recinto historicamente construído em bases colonialistas, de subserviência ao soberano, agora, ao capital.

Era o Olimpo e as divindades não estavam preparadas com a consciência política imprescindível ao exercício de tão relevantes funções. Aqui, certamente, a resposta para “onde iria” a instituição.

A Lava Jato destituiu o Ministério Público de sua dignidade constitucional. É verdade que não se pode atribuir ao universo de integrantes da instituição a desonesta e pusilânime conduta de vassalagem e falta de comprometimento de quem rompeu com as estruturas da fidelidade social e política à Constituição e, principalmente, à sociedade que deveria ser defendida em seus direitos pelo órgão republicano.

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Mas não é menos verdadeiro que o conformismo, o silenciamento, o corporativismo, a complacência da Instituição, como Aparato Repressivo que compõe o sistema de Justiça, conferiu o significado de um Pacto com a traição, a desonra, a parcialidade no desvio funcional, na violação ao devido processo legal e às ferramentas civilizatórias que garantem direito à defesa ampla e respeito aos princípios constitucionais.

A Lava Jato marca a ruptura do sistema de justiça com a estatura moral, ética e política que habita o imaginário social sobre as togas. O Ministério Público faz parte dessa quebra de confiabilidade. Como Narciso, não consegue se olhar por fora, para se ver como é “de verdade”. Thomas Bulfinch, lembrando epigrama de Cooper, entoa:

Evita, amigo, evita debruçar-te

Sobre o cristal de um cristalino veio,

Senão, como Narciso, irás matar-te,

Não por te veres belo, mas tão feio.

 

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS, Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da Executiva Nacional da ABJD.

**Na coluna Política & Direito, professores, advogados populares e juristas trazem análises que refletem as preocupações e inquietações com a situação política e jurídica do Brasil e do mundo. Leia outros textos.

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo