No mesmo dia de junho de 2021, duas mulheres foram atingidas na cidade de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, por homens com uso de armas brancas. Uma delas, foi atingida e assassinada em uma praça de alimentação de um shopping em seu horário de almoço. Jovem como seu assassino, buscava em um curso de enfermagem o mesmo que outras milhares de mulheres: qualificação.
A cena pública de um homem em gesto ameaçador, mão na cintura, já nos informa: estamos diante de mais um caso no qual o homem não aceita a negação do relacionamento.
Ao longo dos últimos anos temos produzido matérias, lives, textos, manifestos sobre o feminicídio. E ao revisar este material, era obrigatório pensar qual contribuição pode ser dada em um novo texto. Já falamos de socialização de meninas (e como se aprende o que é azul e o que é rosa), já falamos da violação de mulheres, da rede de pedofilia em Guarus, do levante feito por mulheres com o "Ele Não!" em 2018.
E de lá para cá todos os dossiês, institutos de pesquisas, dados de delegacia e manchetes de jornais, mostram o aumento de casos de morte de mulheres - tipificado como feminicídio desde 2015, sob a lei 13.104/2015 que altera o Código Penal.
Servir-se da ciência em tempos de negacionismo é ir além do que já foi pontuado sobre o comportamento masculino. E mais, contrariar aquilo que muitas vezes é apresentado como explicação científica mas em nada coopera para compreender o fenômeno do aumento e da banalização da morte de mulheres.
Ao fazermos uma busca pelo termo “facada” na tentativa de compreender sua ocorrência, encontramos mais de 300 casos recentes espalhados pelo país. Novo Hamburgo, Belo Horizonte, Ribeirão Preto, Taguatinga, Campos dos Goytacazes, em pequenas, médias e grandes cidades do Brasil. O discurso de ódio se intensificou desde 2018 e precisamos ler o pesquisador alemão Theodor Adorno e sua produção sobre a personalidade fascista para entender as relações entre capitalismo, psicanálise e frustração.
Vamos apresentar esta discussão a partir de pontos que podem ser avaliadas pelos leitores:
- O uso de armas brancas e outros instrumentos domésticos é feito com emprego de crueldade contra a vítima. Desfigurar, mutilar após a morte arrancando pedaços do corpo, violar sexualmente, todos estes atos são parte do assassinato. Em um caso recente, ocorrido no Distrito Federal, o ex-namorado confessou à polícia ter permanecido no apartamento “vendo a vítima agonizar, gemer e gesticular”;
- É comum a alegação de que “nunca pensamos que isto irá ocorrer conosco”. Mas em uma pesquisa nas redes sociais de vítimas e analisando reportagens recentes, é possível encontrar casos que se entrelaçam, mulheres pesquisando ou militando pelo direito à vida que acabam assassinadas por motivos fúteis em via pública;
- Não são raros os casos em que um assalto se transforma em estupro e feminicídio. Em um caso recente, a servidora pública de 49 anos, Luciana de Mello, termina seu relacionamento ao saber da morte de Letícia Curado de 26 anos (ela passa a refletir sobre a natureza abusiva de seu relacionamento). O assassino de Letícia, confessa ter assassinado também Genir Pereira de Souza, no mesmo ano, na mesma cidade;
- A presença de filhos pequenos é uma variável importante a ser observada pois agrava a pena. Em um dos casos, a vítima foi jogada em um poço na frente do filho de oito anos de idade. Em outro caso, em Ribeirão Preto, ocorreu um feminicídio triplo. Não só a morte de uma mulher de 41 anos mas de suas duas filhas;
- As acusações variam de traição até reclamações na volta de um bar. Recentemente uma mulher de 40 anos foi morta por discussão no Final da Copa Libertadores. Ele era corintiano e ela palmeirense. O casal tinha filhos gêmeos.
Se utilizarmos a técnica de coleta de dados seguiremos construindo casos que se repetem. O que interessa observar, o que é novo neste quadro?
Em primeiro lugar, a idade dos envolvidos em casos recentes de feminicídio. Se estamos discutindo gênero e alguns alegam que estes são comportamentos de outra geração, o que vimos no caso do shopping de Niterói foi um jovem de 21 anos assassinar sua colega por recusar uma oferta de paixão. Esse caso aciona um sinal vermelho para as formas de socialização não apenas nas escolas mas em família, trabalho e círculo de amigos.
Estamos tratando este fenômeno com seriedade?
Em segundo lugar, toda a construção midiática das mulheres segue transformando seu corpo em objeto de consumo e erotização. Em sites adultos, esta erotização vem acompanhada de violência e frequentemente de submissão. A centralidade da propriedade sobre o corpo feminino segue sendo a principal forma de construção da masculinidade?
Precisamos discutir a forma de acesso destes adolescentes à pornografia e como eles imaginam que deva ser uma relação com outra mulher. Tão cedo já vemos um comportamento padrão: esperar meninas de 15 anos na frente da escola, afastá-las dos amigos e família, tudo isto, embora conhecido, continua sendo aceito e justificado.
Os “surtos” de violência seguidos de pedidos de desculpa que instauram um ciclo cujo desfecho tem se tornado muito frequente. Bater com a cabeça da namorada contra a parede, impedir sua saída, trancar portas, forçar relações sexuais, produzir hematomas, deixar alguma marca permanente como lembrança e ameaça. Atos presentes em relacionamentos abusivos.
Em terceiro lugar, temos lido sobre transtornos, bipolaridade, esquizofrenia e comportamento na área de psicologia. É possível ir além: é um erro patologizar o assassino como um homem com problemas psíquicos. Não só porque esta forma de matar mulheres é um fato social (e é objeto da sociologia a considerar a alteração recente do número de mortes) mas também porque banaliza a psicologia e o tipo de sofrimento que esta ciência trata em seus conteúdos.
Gostaríamos muito de ouvir psicólogos que conseguissem ir além da simples patologização.
Não estamos falando de nenhuma doença ou anomalia em 70% dos casos. Estamos falando de uma relação entre indivíduo e sociedade e não de um desvio biológico ou algo semelhante às teorias lombrosianas do século XIX.
Para concluir, até que possamos enfrentar com seriedade o assédio cotidiano nas escolas, Uuniversidades, bancos, casas de família, delegacias, quartéis, igrejas, bares, enfim. Até que façamos algo que coloque limites as formas de assédio, não teremos qualquer avanço no combate ao feminicídio.
São dois fenômenos intensamente conectados. Precisamos de políticas públicas, redes de assistência, alteração da forma midiática de tratar o feminicídio. O que não precisamos é da insensibilidade e do ódio que culpam a vítima pela violência sofrida.
*Pesquisadoras do Núcleo Cidade Cultura e Conflito da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Mariana Pitasse